Úrsula, 1º romance abolicionista, foi escrito por uma mulher

Thais Lombardi
Lado M

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“Mesquinho e humilde livro é este que vos apresento, leitor. Sei que passará entre o indiferentismo glacial de uns e o riso mofador de outros, e ainda assim o dou a lume. Não é a vaidade de adquirir nome que me cega, nem o amor-próprio de autor. Sei que pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de educação acanhada e sem o trato e a conversação dos homens ilustrados, que aconselham, que discutem e que corrigem, com uma instrução misérrima, apenas conhecendo a língua de seus pais, e pouco lida, o seu cabedal intelectual é quase nulo.” (PRÓLOGO)

Úrsula, romance sentimental de Maria Firmina dos Reis, é um marco na literatura brasileira e latinoamericana. Por incrível que pareça, o livro não é tão famoso e foi esquecido por vários anos como obras da mesma época que não tratam de “assuntos tão sérios”: uma obra escrita por uma mulher, nordestina negra e que retrata os negros como seres humanos diferente de obras da época. A autora estava totalmente à margem da sociedade e em Úrsula deu visibilidade a quem estava ao seu lado.

Maria Firmina dos Reis nasceu em 11 de março de 1822 e viveu no Maranhão até sua morte, em 11 de novembro de 1917. Foi professora por boa parte da sua vida, abolicionista e corajosa: anos antes de se aposentar fundou uma escola mista para quem não poderia pagar por seus estudos.

Ela escreveu para vários veículos de comunicação, foi compositora e música. Tem uma vasta obra de contos, poemas e outros textos literários que só foram descobertas e divulgadas na década de 70 por um especialista no Rio de Janeiro. Nas cópias originais, a autora não assinava o seu nome. Após vastas pesquisas, descobriram que “A Maranhense”, na verdade, era a professora Maria Firmina dos Reis.

Úrsula é conhecido como 1º romance abolicionista e foi escrito por uma mulher. Em uma época na qual racismo e machismo eram naturalizados, não é de se espantar que o romance não tenha sido disseminado ou estudado por escolas e faculdades.

Úrsula

“Senhor Deus! Quando calará no peito do homem a tua sublime máxima — ama a teu próximo como a ti mesmo — , e deixará de oprimir com tão repreensível injustiça ao seu semelhante!… Àquele que também era livre no seu país… Àquele que é seu irmão?!”

Túlio, um escravo, encontra Tancredo acidentado em uma estrada. Febril e delirando, ele foi levado para a residência da senhora Luiza B., viúva, doente e mãe de Úrsula. Recebe lá os cuidados da donzela e do escravo, que acaba recebendo dinheiro de Tancredo para conquistar sua liberdade.

Mesmo alforriado, Túlio, um homem de bom coração, continua a se dedicar aos cuidados com o enfermo, revezando com Úrsula, uma jovem que possui uma grande necessidade de amar, mas também sente inveja do negro, pois ele, diferente dela, é livre. Nesse instante é que percebemos que autora sugere que o patriarcado é um sistema tão opressor quanto a escravidão e também precisa ser abolido.

No desenrolar do romance, a autora também mostra o ponto de vista do negro e o coloca em pé de igualdade aos personagens brancos, dando voz aos personagens Túlio, Mãe Susana e Antero, criando assim a identidade e representatividade da classe mais oprimida da sociedade brasileira até hoje.

Úrsula vive uma vida pesada demais para uma jovem: cuida da mãe doente, possui sentimentos conflitantes e a suspeita que seu pai fora assassinado por seu tio. Ao conhecer Tancredo, sente pena de sua história e quase automaticamente um amor avassalador.

Porém, seu tio, mesmo sabendo do seu noivado, ainda deseja casar-se com ela, independente do parentesco ou da vontade dela. Isso faz com que a moça e Tancredo se refugiem com a ajuda de escravos.

O enredo, descrições e até mesmo as falas nos remetem às tragédias gregas: sempre tensos e com finais trágicos. Porém no lugar de deuses, reis e nobreza, em Úrsula temos as figuras mais fortes da nossa época: comendadores, fazendeiros, donos de escravos e etc.

Ao sentir todos esses sentimentos, o leitor tem uma experiência de catarse (definida por Aristóteles como uma limpeza da alma por meio do sofrimento alheio representado): ele pode se reconhecer naquela situação ou também pode se compadecer e perceber como as relações se estabeleciam naquele período.

Outro ponto importante para nós, leitores, com um distanciamento de quase 200 anos do lançamento do livro, é conhecer um vocabulário novo e próprio da época. A primeira vista, essa característica do livro pode causar estranhamento aos leitores mais novos. Os parágrafos são longos e as descrições rebuscadas (exageradas para nós que vivemos numa época em que nos comunicamos por emojis) e com palavras pouco conhecidas. Porém não é nada que atrapalhe o entendimento, pelo contrário: é um documento que mostra como a língua é um organismo vivo e está em constante movimento.

A leitura de Úrsula é essencial para que nós enxerguemos o autoritarismo e as injustiças cometidas nessa sociedade. Serve como reflexão sobre a vida da autora, o esquecimento de sua obra durante todo esse tempo e também como podemos ter perdido muita literatura de qualidade devido a um sistema machista e branco.

Ficha Técnica

Título original: ÚRSULA
Páginas: 224
Formato: 13.00 X 20.00 cm
Peso: 0.224 kg
Acabamento: Brochura sem Orelha
Lançamento: 06/11/2018
ISBN: 9788582850817
Selo: Penguin Companhia

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Thais Lombardi
Lado M
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Cineasta, redatora, revisora, feminista e vegetariana. Gosta de ler, gatos, fazer crochê e destruir o patriarcado.