4 iniciativas do feminismo negro que você precisa conhecer

Nairim Bernardo
Lado M
Published in
6 min readJan 19, 2016
Capulanas Cia de Arte Negra. Foto: Naná Prudêncio

Se ser mulher já é difícil nesse mundo de machismo, imagine só para as mulheres negras. Agora, imagine só para as mulheres negras da periferia. Pense em como é difícil para elas verem os resultados do Mapa da Violência 2015, elaborado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso). Segundo ele, em dez anos o número de homicídios contra mulheres negras aumentou em 54%, passando de 1.864, em 2003, para 2.875, em 2013. Enquanto isso, os homicídios contra mulheres brancas diminui em 9,8%, foram 1.747 em 2003 e 1.576 em 2013.

Pois é, tudo isso dói, e bastante. Saber que as diversas formas de preconceito contra a mulher, entre elas o feminicídio, são extremamente seletivas quanto à cor da pele é simplesmente horrível. E já que dentro do movimento feminista as mulheres negras têm pautas diferentes das mulheres brancas, algumas iniciativas do feminismo negro surgem não só para dar apoio a essas mulheres, mas para mostrar que é possível resistir.

Blogueiras Negras

O Blogueiras Negras é um site com aproximadamente 200 autoras. São mulheres negras que viram na escrita uma forma de lutar contra o racismo, sexismo, lesbofobia, transfobia, homofobia, classismo e gordofobia. Nessa plataforma, elas dividem com outras mulheres, afrodescendentes e demais interessados na luta feminista e antirracista, seus pensamentos, vivências e projetos.

Vale ressaltar que qualquer mulher afrodescendente pode colaborar com textos para o site.

TOMN — Teatro da Oprimida Mulheres Negras

O grupo, composto exclusivamente por mulheres negras, utiliza-se de técnicas do Teatro do Oprimido para discutir opressões vividas por elas. Criado por Augusto Boal, o teatro do oprimido parte da encenação de uma situação real para que através dela ocorra uma troca de experiências entre atores e espectadores. As intervenções diretas na ação teatral propõe ações que possam transformar a realidade que está sendo encenada.

Além das cenas, o grupo organiza rodas de conversa para discutir temas como a solidão da mulher negra e a apropriação cultural.

Capulanas Cia de Arte Negra

Companhia formada por jovens artistas negras na busca de dialogar com a sociedade sobre as descobertas, anseios e percepções das mulheres negras e periféricas. Através da arte, elas apresentam conceitos como a força da herança cultural africana da oralidade, a cultura popular, o sagrado, a valorização da memória e a ancestralidade.

Fala Guerreira

No ano passado, o coletivo abriu o curso Mulher e Mídia na Quebrada.

A ideia era oferecer oficinas de Linguagem Jornalística, Fotografia e Diagramação envolvendo diversos temas sobre a situação da mulher e produzir revistas impressas e online feitas por e sobre as mulheres periféricas.

Conversei com as meninas do Fala Guerreira para saber um pouco mais do projeto e entender o que elas pensam sobre feminismo e sua relação com a mulher negra e periférica.

LM — Como e por que surgiu o Coletivo?

Fala Guerreira: Em 2011 ocorreu um episódio machista em um sarau aqui da zona sul de SP e isso desencadeou uma resposta coletiva das mulheres que faziam parte do circuito. Essas ações de mulheres, a presença “velada” do machismo e o tabu desse assunto nos espaços culturais, bem como em outros espaços, somado a outras indignações foi o que contribuiu significativamente para a organização do nosso Coletivo.

A criação do nosso coletivo se deu principalmente para pensar outra experiência de feminismo, que fosse mais popular, já que para nós foi difícil nos assumir feministas, afinal parecia que precisávamos ler muitos livros teóricos para poder dizer “eu sou feminista”. Percebemos que o feminismo que a gente conhecia era muito intelectualizado, debatido por mulheres com outras vivências, e pouco discutido entre nós, mulheres da periferia.

LM — Quais são as iniciativas e trabalhos que o Coletivo desenvolve?

Fala Guerreira: Em 2015, realizamos o curso “Mulher e Mídia na quebrada — comunicação popular”, com o intuito de reunir mulheres jovens da periferia de São Paulo para realização da Revista Fala Guerreira. A revista já conta com duas edições e caminha para a terceira, que será lançada em março.

Além da Revista e do curso, participamos de rodas de conversas e debates com outras mulheres feministas e não feministas no intuito de que mais mulheres se reconheçam nessa luta e encontrem espaço para falar de suas questões e exercitar seu protagonismo.

Também aplicamos alguns questionários para saber o que as mulheres do bairro do Jd. Ibirapuera, local onde atuamos, pensam sobre feminismo, violência contra mulher, divisão sexual do trabalho, etc. Com isso pretendemos nos debruçar sobre o perfil das mulheres do nosso bairro e propor ações que venham de encontro com as suas necessidades.

LM — Como as ações de vocês podem ajudar as mulheres?

Fala Guerreira: Nós não acreditamos que ajudamos as mulheres e sim que de alguma maneira podemos fazê-las despertar para algo que já existe nelas. Acreditamos na força dos encontros e nas partilhas que sempre nos fazem evoluir e repensar pra onde estamos caminhando, isso nos mantém firmes para olhar o norte. Sem dúvida, juntar mais de 40 mulheres na produção de uma revista feminista, em que todas as envolvidas são da periferia, nos trouxe (tanto para elas quanto para nós), a sensação de que não podem mais falar por nós, que temos capacidade de produzir um material de qualidade e que isso pode e já tem aberto diálogo com mulheres como nossas irmãs, tias, mães, sogras.

É muito bom quando nos reconhecemos em algo que é dito e falado, porque aquilo reflete o que boa parte de nós vivencia. Acho que esse é o ganho de maneira geral, para todas nós!

LM — Vocês acham que as demandas do feminismo negro e periférico são contempladas dentro do movimento feminista?

Fala Guerreira: O movimento feminista é a luta pela emancipação de todas as mulheres, sendo assim, o feminismo negro e o periférico são expressões reais desse movimento de emancipação. Nós, mulheres negras e periféricas, não cabemos em um discurso universalista, porque temos demandas específicas e urgentes a serem pautadas, discutidas e praticadas. E é por isso que estamos aqui, todas juntas, de muitos lugares, na constante (re)criação de um feminismo que seja ancestral e que encontre outras mulheres, que tenha outras práticas políticas, práticas construídas por nós, para nós, que contribua com a nossa real existência cotidiana.

Em um cenário contemporâneo não cabe pensar um “movimento feminista uno”, que contemple a todas. Vivemos o momento de um movimento feminista plural, que só pode crescer e ter legitimidade, justamente por abarcar mulheres de realidades diversas, protagonizando nossas demandas seja no feminismo negro, periférico ou do campo, lésbico, trans ou interseccional.

LM — Para vocês, qual é a maior diferença entre a luta feminista na periferia das que não necessariamente fazem um recorte racial e de classes?

Fala Guerreira: Vamos pensar na própria questão do aborto: feministas pró-aborto de outra classe social podem pagar uma clínica, nós mulheres da periferia dificilmente teremos essa possibilidade e por isso, quando passamos por essa situação vivemos um risco de vida muito mais acentuado, além de ter que lidar com a constante criminalização e a situação de clandestinidade que sempre bate a nossa porta.

Se o corpo das mulheres é objetificado de maneira geral, nós negras, sofremos com a hipersexualização dos nossos corpos, o tempo inteiro. Sofremos com o racismo que nos coloca na base da pirâmide com os menores salários, com condições de trabalho mais precarizadas. Ainda enfrentamos questões como pior atendimento nos hospitais, somos preteridas por homens brancos e homens negros no que diz respeito aos relacionamentos, sem contar a formação precária da nossa autoestima. É por isso que objetivamente nossas demandas são outras.

Pensamos que o nosso feminismo ainda não está em nenhum livro, em teorias ou entre uma intelectualidade branca. O nosso feminismo é pautado na urgência do agora e o primeiro passo que demos foi sair de conceitos abstratos e trazer a reflexão de uma maneira mais prática e mais cotidiana em nossas vidas. Isso porque buscamos constante dialogo com nossas mães, tias, avós, vizinhas, enfim, mulheres populares. Achamos que tá aí a nossa ruptura com o que podemos chamar de “feminismo tradicional”: nossa luta é popular, cotidiana, sensível a força de mulheres anônimas, guerreiras que na sua batalha diária constroem corajosamente estratégias para serem mulheres livres. O nosso feminismo vem legitimar a luta diária de cada mulher da quebrada e fortalecer a caminhada de cada irmã.

Um feminismo que não faz recorte de classe e nem racial, é uma luta burguesa, cheia de privilégios. A diferença desse tipo de feminismo com o nosso é simples: é um feminismo cheio de privilégios, uma busca de emancipação de poucas pessoas as custas da opressão de outras.

Originally published at www.siteladom.com.br on January 19, 2016.

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Nairim Bernardo
Lado M
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Estudante de jornalismo, aspirante a atriz e futura estrela em ascensão