A Época da Inocência traz reflexões ainda atuais

Rafaela Arradi
Lado M

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Se em pleno 2019 ainda nos encontramos diante do dilema de padrões e normas sociais, que muitas vezes vão contra nossas crenças e vontades pessoais, imagine em meados de 1870. A Época da Inocência, escrito pós Primeira Guerra por Edith Wharton e vencedor do Pulitzer de 1921, discorre sobre a alta sociedade de Nova Iorque nos anos 1870 quando as aparências falavam mais alto que qualquer realidade.

Diante desse contexto, a autora descreve seus personagens abordando seus desejos mais íntimos e o início de uma época em que alguns padrões começam a ser sutilmente questionados perante a construção de valores próprios.

A narrativa de A Época da Inocência

A história apresenta Newland Archer, um advogado que encontra-se noivo de May Wellend, um exemplo de moça e um ótimo partido para a época. Archer não teria do que reclamar, até o momento em que conhece a condessa Olenska.

Ellen Olenska, prima de May, tinha um casamento abusivo na Europa e decide retornar a Nova Iorque para fugir de seu marido e pedir o divórcio, onde é brutalmente questionada e mal vista por seu modo de pensar e agir, desde as roupas que usava em determinada ocasião e com quem conversava até pelo fato de ter rompido um casamento. Ao conhecer Archer e se tornarem próximos, a condessa passa a transpor um pouco da sua ideologia para o rapaz, pondo-o a questionar tudo que até então nunca havia analisado e que praticava automaticamente.

A Época da Inocência

‘‘Nos salões de Nova York, uma dama não se afastava de um cavalheiro para buscar a companhia de outro. Rezava a etiqueta que ela permanecesse imóvel como um ídolo, enquanto os homens que desejassem lhe falar se sucedessem ao seu lado. Mas Ellen parecia não perceber que transgredira uma norma; inteiramente à vontade, sentou-se no sofá ao lado de Archer e brindou-o com seu olhar mais amável.’’

Na época retratada no livro, as regras eram muito mais rígidas e superficiais. A burguesia da grande metrópole era regida de acordo com suas roupas, casa e lugar onde morava e com quem se relacionava. Todos deveriam procurar um companheiro para passar o resto da vida, uma vez que o divórcio era extremamente mal visto.

Para esse matrimônio, buscava-se um parceiro(a) que fosse bem visto, vindo de uma família com boa reputação, boas condições financeiras, uma pessoa estável e de bons costumes. Tendo essas características, seria perfeito para casar. Embora houvesse um carinho envolvido, o casamento estava muito mais relacionado a encontrar uma boa companhia para viver junto ao longo da vida do que se apaixonar e ter um laço afetivo.

As mulheres pouco tinham voz ou personalidade, seguindo todas as atividades comuns para o gênero naquela época, como bordar e visitar parentes. Não era bem visto se encontrar com homens que estavam para casar ou até mesmo se relacionar com pessoas que não faziam parte dessa alta sociedade.

A mulher do século XIX

May Wellend faz o papel da tímida moça perfeita da época. Inteligente, mas não atrevida. Com personalidade, mas não “mais do que o necessário”. Uma mulher “direita” que não contraria nem apresenta fortes opiniões, May agrada a todos a sua volta com sua bondade e simpatia.

Ao longo da história, ela demonstra o seu amor e afetividade por Archer, seu futuro esposo, e apresenta uma postura muito honesta, no momento em que diz que, se estivesse envolvido com outra mulher, não haveria problema em ele deixá-la para viver com quem realmente tivesse interesse e desejo. Esse trecho deixa o sentimento de empatia no leitor, mas também intriga ao nos fazer pensar se May era apenas uma pessoa boa ou demasiadamente ingênua.

A ousadia de Ellen Olenska

A condessa Olenska traz ao livro um tom meigo e doce, mas que não reprime seus pensamentos. Em meio a um casamento que não a fez feliz, não hesitou em abandonar o marido e mudar de país. Não estava tão atenta a qual roupa iria usar ou com quem conversar, afinal fazia aquilo que bem entendesse ser o melhor.

Ellen traz para aquela sociedade, da maneira mais natural possível, a vontade de se ver uma mulher livre e independente que age de acordo com as suas vontades, mesmo quando todos, inclusive sua família, estão contra e até envergonhados de suas decisões e atitudes.

Reputação e dinheiro VS felicidade

“Mas, em termos materiais, se a gente parar para pensar… o senhor sabe do que ela está abrindo mão? Aquelas rosas ali no sofá… são milhares, em estufas e a céu aberto, naqueles fantásticos jardins suspensos que ele tem em Nice! Joias… péro- las históricas… as esmeraldas Sobieski… zibelinas… Mas ela não liga para nada disso! Só liga para arte e beleza, só vive para arte e beleza, como eu sempre vivi, e esteve rodeada de arte e beleza. Quadros, móveis de valor inestimável, música, conversação brilhante… ah, desculpe, meu caro, mas vocês aqui não fazem ideia do que seja isso! E minha Ellen tinha tudo isso; e as homenagens dos grandes. Ela me disse que não a acham bonita em Nova York… Santo Deus! Já lhe pintaram o retrato nove vezes; os maiores pintores europeus imploraram esse privilégio. Isso não vale nada? E o remorso de um marido apaixonado?”

Mesmo diante de um relacionamento abusivo, motivo pelo qual a protagonista fugiu da Europa para Nova Iorque, sua família e conhecidos a sua volta insistem em fazê-la voltar atrás e ir outra vez de encontro com o marido. Em uma carta, ele dizia estar arrependido e que reconhecera seus erros. Embora Ellen deixasse claro que não voltaria e que essa vida de antigamente não a faria feliz, as pessoas pareciam fechar seus ouvidos para seus argumentos e se intrometiam na vida da condessa, preocupando-se com a sua reputação diante de um divórcio, além de comentarem incessantemente a respeito dos bens materiais dos quais seu marido possuía e provinha a Ellen.

Isso tudo mostra como naquela época bens materiais e status tinham um valor para a sociedade muito mais alto do que o bem estar ou vontade própria de cada um, mesmo que essa reputação sacrificasse muitas vezes a sua própria felicidade.

O homem que tudo vê

Archer, ao longo da história, passa de um homem comum do século XIX para um rapaz que passa a refletir mais sobre a sociedade em que está inserido e as relações interpessoais até o papel social de cada gênero. Dessa forma, em um diálogo com outro personagem, é discutido sobre a liberdade das mulheres e o direito de serem livres, o que ainda estavam muito além.

‘‘ ‘Você acha longo? Isabel Chivers e Reggie noivaram durante dois anos; Grace e Thorley durante quase um ano e meio. Não estamos bem como estamos?’

Era a tradicional pergunta das moças, e ele se envergonhou por achá-la singularmente infantil. Sem dúvida, May apenas repetiu o que ouvira; mas logo completaria 22 anos, e Archer se perguntou em que idade as mulheres ‘direitas’ começavam a falar por si mesmas.

‘Nunca, se não lhes permitimos’, respondeu mentalmente e recordou sua acalorada discussão com Mr. Sillerton Jackson: ‘As mulheres têm de ser tão livres quanto nós…

Logo seria seu dever tirar a venda dos olhos dessa jovem e fazê-la encarar o mundo.’’

Embora a reflexão, ainda que sutil, seja interessante para a temática e provocação do livro, a leitura traz o incômodo da narrativa trazer o homem como aquele responsável por libertar e elucidar a mente das mulheres que até então estavam presas e não conseguiam perceber esse problema e libertarem-se sozinhas.

Além de os apontarem como aqueles que ‘‘permitem’’ a liberdade da mulher, a história ainda traz Archer como aquele que enxerga as diferenças e barreiras e problematiza as situações daquele cotidiano sem que nenhuma outra personagem feminina faça o mesmo, não sendo capazes de ter esse discernimento quanto às suas próprias realidades.

Não foi dessa vez

Durante A Época da Inocência, lidamos com o momentos de apreensão e desejo de Archer e Ellen, que querem ficar juntos, mas hesitam por conta de etiqueta, repercussão negativa e medo de gerar conflitos. Ainda que, em diversos momentos, Archer aponte a vontade de fugir com Ellen e viverem sua paixão, nunca o fazem e a narrativa deixa o sentimento de angústia por nunca o terem feito. Afinal, por mais que tenham crescido, sonhado e amadurecido durante a jornada, as regras do século XIX falam alto e os aprisionaram.

Repercussões

Devido ao sucesso do livro, a história foi gravada posteriormente em 1994 por Martin Scorsese e transformada em um filme, no qual a protagonista Ellen Olenska é interpretada por Michelle Pfeiffer.

A Época da Inocência, visto que foi publicado na década de 20, foi uma história que trouxe um olhar diferente para a sociedade, podendo fazer uma leve crítica e provocar os leitores a pensar junto com os personagens, que também estavam se descobrindo e reavaliando algumas posições em uma sociedade tão conservadora e não tão distante do momento em que foi escrito.

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Rafaela Arradi
Lado M
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Amante de uma boa leitura e em rumo a uma nova jornada profissional na escrita