A Bailarina da Morte: a gripe espanhola no Brasil

Natália Sanches
Lado M

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Em outubro de 2020, as historiadoras Lilia Schwarcz e Heloisa Starling lançaram o livro A Bailarina da Morte — A gripe espanhola no Brasil pela Companhia das Letras. A obra com aproximadamente 390 páginas conta como esse vírus letal “dançou” em cidades importantes do país no começo do século XX e analisa de forma minuciosa os erros do passado que se repetem no presente, mais precisamente na intensa pandemia de Covid-19, cujo vírus assolou o país de Norte a Sul no ano de 2020.

O livro é precioso por diversos motivos. Além de trazer um relato histórico bem detalhado, sua linguagem é acessível para todos e todas que se interessarem em entender como o Brasil não está passando por algo tão inédito assim em 2020.

O conhecimento aprofundado das autoras que são historiadoras e cientistas sociais refletem em observações comparativas bem precisas. É possível perceber como o Brasil repete muitos erros e acerta bem pouco na condução da pandemia do coronavírus, mesmo agora com um Sistema Universal de Saúde e universidades renomadas que pesquisam como o vírus pode ser disseminado. No entanto, e isso também fica bem claro em A Bailarina da Morte — A gripe espanhola no Brasil, nossas desigualdades não mudaram e, infelizmente, nossa política também não. Ademais, o livro também conta com dados e citações primorosas, fruto de uma pesquisa intensa por parte das autoras. Tais destaques, em conjunto, resultam em uma leitura fundamental para entender o que foi 2020 e, principalmente, perceber que ele não foi tão diferente de 1918.

A Bailarina da Morte

O começo do livro já introduz — para quem lê — o resultado de muitas variantes negativas. O mundo se encontrava em uma devastadora guerra que começara em 1914 e que culminou na queda de vários impérios, além de deixar milhões de mortos. Além disso, o mundo não era um lugar bom de se viver, pois ele estava cada vez mais industrializado e exigindo que os seres humanos vivessem apenas para o trabalho, o que intensificava as desigualdades sociais e deixava tudo meio que “prestes a explodir”.

E foi o que ocorreu. Como forma de “castigo”, diriam os mais religiosos, a “Espanhola” surge no mundo. É importante ressaltar que a gripe não tem origem no país citado, mas por ter sido o primeiro a divulgar a moléstia, acabou levando a fama. É interessante destacar esse fato, pois as pesquisadoras afirmam como a doença leva o nome de um país “inimigo” ou “estrangeiro”, muito comum na Idade Média que se repetiu em 1918 e que vimos e ouvimos muito no mundo do século XX, com o “vírus chinês” que atravessou fronteiras, se instalou em todo o mundo ocidental e fez a população ser racista com todos aqueles que lembravam o país asiático.

Em 1918, quando a Espanhola chega no Brasil, o discurso não muda. A bordo do navio Demerara vindo de Liverpool e que passou por 4 estados, o vírus dançou entre o litoral e o interior brasileiro. O livro retrata com minuciosidade como foi a reação em Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Belém e Manaus.

O vírus chega nas cidades

Quando A Bailarina da Morte começa a se adentrar nas realidades das cidades destacadas, aparece a “brasilidade”. Apesar de o Brasil estar no “berço” da modernidade, o país tinha sérios problemas sociais, desde a falta de um saneamento básico, assim como a negligência em relação às pessoas que foram escravizadas e que agora, libertas, não tinham o mínimo para garantir sua sobrevivência. A política era a do café com leite, ou seja, dominado pelas oligarquias, o que agravava ainda mais, caso estourasse uma crise na saúde pública, devido ao alto nível de politicagem que o país concentrava.

Nesse momento, o livro é quase “didático” em mostrar como os líderes destes estados agiram para conter o vírus. A primeira reação era negacionista, como se o vírus fosse realmente inofensivo, em seguida, a criação de notícias falsas que envolviam tanto atestados de mortes falsos, mas também remédios milagrosos sem comprovação alguma, fora o discurso da economia, intensificado nos lugares que dependiam dos portos para funcionar.

No lançamento do livro, em outubro de 2020, a pesquisadora Natália Pasternak destaca essa sensação:

“A gripe espanhola tem mais de 100 anos. A gente tá fazendo os mesmos erros de 100 anos atrás?(…) O livro é um exercício para entender o comportamento humano”.

Todos as cidades afetadas e descritas do livro trazem uma particularidade, mas é preciso destacar algumas relações que mostram tanto a tentativa de evoluir a questão da saúde pública, como também entender como a sociedade brasileira arranjou um jeito único de lidar com o problema. É o que Lilia afirmou no dia do lançamento do livro:

“O Brasil contou várias histórias dentro de uma mesma história”

Uma das cidades que se destacaram foi Salvador, ela foi afetada de forma devastadora, mas foi “salva” pela sua fé. A “ciência encantada” como foi descrita pelas historiadoras, alterou o que seria um ano de festividades religiosas para um período de intensa busca pela cura através da fé, foram realizadas missas para afastar a peste, mas também ficou escancarado o racismo quando religiões afro-brasileiras também queriam fazer o mesmo.

Já o Rio de Janeiro, a capital federal da época, também enfrentou a espanhola de uma forma nada ideal. Por ser uma cidade muito populosa e relativamente moderna, ela era uma vitrine e deveria ser um modelo para o país caso seguisse à risca os protocolos para conter a pandemia, no entanto, não foi o que ocorreu. Tudo virou uma questão política e cada notícia era motivo para desconfiança, a ponto de um jornal da cidade ter uma sessão somente para divulgar os boatos falsos, ou na linguagem do século XXI, as “fake news”

O capítulo dedicado à São Paulo também é bem interessante. As autoras discutem o papel que os imigrantes, sobretudo os italianos, tiveram na “época da espanhola”. Os dados são impressionantes, pois até 1920, mais de um milhão de italianos desembarcaram na Terra da Garoa e eles foram os mais afetados pela gripe, pois a mistura de línguas, costumes e identidades acentuavam as diferenças sociais. A parte do capítulo em que as historiadoras falam também dos operários e como as greves ferviam a capital paulista é bem singular, pois é notável como essa massa é o que movimentava o país e, diante de uma pandemia, não podia parar, ainda mais no auge dessa revolução industrial brasileira. Diante de uma perspectiva futurista, o patrão pode até ser afetado na pandemia de COVID-19, mas o trabalhador pagará com a vida.

A Bailarina da Morte — A gripe espanhola no Brasil é finalizado com uma análise incrível sobre o passado e o presente. As pesquisadoras não deixam de comentar sobre a negligência estatal do Governo Federal no século XXI e de exaltar o Sistema Único de Saúde, presente no país desde a Constituição Cidadã de 1988. Além disso, vale ressaltar que todo o livro foi feito sem uma pesquisa “in loco”, visto que as Universidades ainda se encontram fechadas. Se não fossem os trabalhos de inúmeros pesquisadores que se debruçaram “no tempo da espanhola” digitalizados nas plataformas de pesquisa, essa memória não teria gerado tanto conhecimento, como ilustra a epígrafe de Albert Camus no último capítulo do livro.

Assim como em 1918, o Brasil de 2020 e 2021 ainda passará por diversos desafios relacionados à pandemia e à saúde pública. No lançamento do livro pela Companhia das Letras, Lilia Schwarcz afirma: “A sociedade só entende a epidemia quando ela compreende isso com os seus instrumentos, então é preciso que a doença vire um fenômeno social e cultural para que ela ganhe lugar.”.

Com o fim da gripe espanhola do Brasil, pensou-se pela primeira vez em um Ministério da Saúde, que chegou a ser concretizado em 1930. Fica o questionamento se a sociedade brasileira e suas autoridades irão entender o que foi a pandemia de Covid-19 para algo mudar, mesmo tendo um “enorme passado pela frente”.

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Natália Sanches
Lado M
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é Natit. Professora especializada em Estudos Brasileiros, paulistana de nascença, mas catarinense de coração. 17 tatuagens e cabelo curtinho. Gosta de tulipas.