A Fúria e Outros Contos: a voz feminina na literatura fantástica

Natália Sanches
Lado M

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A arte argentina é misteriosa. Podemos ver isso no seu tango, em que ritmo e olhar se misturam. Também é possível enxergar esta relação em seus filmes, profundos e com finais surpreendentes. No entanto, o mistério ultrapassa qualquer limite quando se trata de sua literatura, principalmente quando levamos em consideração os contos argentinos.

Acostumados com inúmeras edições dos contistas homens do país vizinho, a Companhia das Letras surpreende com a publicação inédita de uma das maiores escritoras da literatura moderna: Silvina Ocampo. Conhecida apenas por ser uma sombra de seu marido, Adolfo Bioy Casares e seu amigo, Jorge Luis Borges, a escritora argentina organizou com os escritores o livro Antologia do Conto Fantástico no Brasil e, somente por isso, seu nome não era total desconhecido por aqui.

Nascida em 1903 e falecida em 1993, agora, é possível compreender e apreciar com detalhe a arte de Silvina, a partir do livro A Fúria e Outros Contos uma coletânea de contos que mistura confissões, fantasia e perturbações.

Os contos de Silvina não são lineares. São fantásticos, ou seja, possuem elementos que não seriam reais em um cotidiano inerte propício das grandes metrópoles — como Buenos Aires (cidade que vivia) — mas não possuem um padrão neste sentido. Se em um conto temos confissões amorosas cujo conteúdo surpreenderia até o desiludido mais enlouquecido, em outros temos crianças carbonizadas e idosos assassinos e sádicos. É como se cada conto, o elemento metafórico nos intrigasse a ponto de querer conversar com Silvina e indagá-la: “mas o que você quis dizer com isso?”.

Entretanto, não é uma surpresa que seja assim. A vida pessoal de Silvina é misteriosa a ponto de a escritora criar narrativas que não precisem fazer sentido para serem tão boas. Caçula de uma família aristocrática da Argentina, Silvina era a irmã mais nova de Victoria Ocampo, figura emblemática da cultura portenha. Em uma época de pouca representatividade feminina no país, sua irmã era igualada a Evita Perón, primeira-dama argentina nos anos 40. Por causa dessa exposição explícita da irmã e, consequentemente da família, Silvina foi educada em casa e, aos 20 e poucos anos, foi viver em Paris, onde isolou-se um pouco da cultura latino-americana para ser uma “desconhecida” na Europa.

Não obstante a isso, a escrita não se tornou europeia. Esse elemento fantástico característico da cultura latino americana apenas se potencializou na sua escrita. Silvina, assim como tantas outras mulheres na literatura, teve sua arte camuflada pelos escritores de sua época, por isso, o trabalho de pesquisa é tão importante, é preciso autenticar que as mulheres também são fruto da história e que a literatura é uma fonte importante para entender como elas também eram influenciadas por essa cultura. Laura Deorsola, tradutora da obra no Brasil, em entrevista ao portal Nexo Jornal, afirma este pensamento:

“Atualmente também é possível fazer uma leitura de gênero: Silvina era mulher. Por fim, acho que por anos, quando se falava nas letras latino-americanas, o mercado [editorial] demandou algo que se encaixasse no que foi resumido como ‘literatura fantástica’. Ainda que Silvina tenha escrito muitos contos fantásticos, suas características não eram tão facilmente classificáveis assim. Ela sempre foi um bicho raro na fauna literária”.

É imprescindível que os leitores, ao lerem A Fúria e Outros Contos saibam que os escritos não trarão respostas para questões filosóficas, nem aliviarão os tormentos cotidianos da vida. É uma obra para aguçar o desconhecido e formular inquietações, algo que só uma boa literatura é capaz de fazer.

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Natália Sanches
Lado M
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é Natit. Professora especializada em Estudos Brasileiros, paulistana de nascença, mas catarinense de coração. 17 tatuagens e cabelo curtinho. Gosta de tulipas.