A Indomável Sofia é um livro para as ovelhas negras de suas épocas
Quando pensamos na Europa do século 19, imediatamente vemos carruagens, mulheres em espartilhos, imagens em preto e branco ou sépia e uma sociedade em crescente evolução, entupida de regras aristocráticas e convenções sociais. A Revolução Industrial estava em pleno desenvolvimento, e via-se tanto mulheres que começavam lentamente a adentrar o mercado de trabalho nas fábricas têxteis, quanto mulheres que ficavam limitadas à vida privada e doméstica.
Esse é o cenário da obra A Indomável Sofia, de Georgette Heyer. Escritora da virada do século 20, ela foi a pioneira em estabelecer o gênero romance histórico e seu subtipo Romance Regencial — cujo período se passa durante a era Austeniana, entre 1770 e 1820. Ela e a própria Jane Austen servem de inspiração para autoras atuais, como Julia Quinn, Mary Balogh e Madeleine Hunter. Georgette, apesar de não fazer uma crítica tão contundente à sociedade de 1800 — como Jane fazia à sua época, e com uma excelência muito maior já que ela viveu realmente naquele período — não deixa escondida sua opinião sobre a posição feminina. Isso se mostra claro em suas obras, especialmente em A Indomável Sofia, ao apresentar uma protagonista à frente de seu tempo, com um pensamento próprio, amável, gentil, manipuladora (no melhor dos sentidos), não submissa e que não possui papas na língua para dizer o que pensa e que muito menos se importa com a opinião alheia sobre ela.
A Indomável Sofia
A Indomável Sofia conta a história de Sofia, uma jovem de vinte anos e não casada, que vai se hospedar na casa de sua tia em Londres, por uma temporada, na busca de um possível pretendente. Para uma época cujo objetivo principal feminino era casar-se por volta dos dezessete anos e fincar-se em casa, Sophy, como é carinhosamente apelidada na trama, poderia ser considerada praticamente uma solteirona que “ficara para titia”. Criada pelo pai diplomata toda a vida, já que a mãe falecera quando a menina ainda era infante, Sofia teve uma vida que, para a época, podia ser considerada escandalosa: ela cuidava das próprias finanças, da administração das residências em que ela ficava enquanto o pai estava alocado num país, bem como conheceu inúmeros países enquanto viajava com o pai em suas missões diplomáticas. É exímia atiradora, amazona e ainda por cima, dona de uma personalidade que, para a época, só podia ser vista como insolente e volúvel, além de não ter interesse nenhum em respeitar as convenções sem fim que existiam.
Deve-se dizer algumas coisas sobre a posição feminina naquela sociedade do século 19. O padrão feminino na época era o de uma mulher que não falava, não se expressava, que se fechava na residência praticamente o dia inteiro e ficava à mercê de seus sais terapêuticos pois sua constituição mental era considerada frágil demais. O exemplo mais claro que é dado no livro é o da própria tia da protagonista, que não possui qualquer voz no que concerne às decisões que são tomadas na casa. As mulheres na época possuíam todas as finanças sob o poder do marido, bem como a guarda de seus filhos. Dessa forma, Sophy se torna uma figura ainda mais pitoresca e contraditória: ela não poupava esforços para provar que estava certa aos seus familiares, sem deixar de ser divertida e irreverente no meio do caminho. Uma personagem muito inteligente e com um belo jogo de cintura para conseguir se safar das inúmeras enrascadas que ela se mete ao longo da obra.
Por conta de seu comportamento além dos padrões e sua franqueza desconcertante, nem todos os residentes ficam felizes com sua chegada. Em especial seu primo mais velho e administrador da casa, Charles Rivenhall. Acostumado com uma mãe silenciosa e a ditar as regras da casa desde que passou a tomar conta de tudo, e ainda noivo da maçante Srta. Wraxton, que é possível associar com o que a sociedade espera de uma mulher — pudica, severa consigo mesma e com os demais -, Sophy só pode ser considerada como um estorvo que Charles quer se livrar o quanto antes. Mas a presença da prima consegue não apenas trazer alegria pra uma mansão cinzenta e uma família igual, como também mostrar que “convenções não trazem felicidade” e que o companheirismo e se doar para aqueles que você ama é bem mais importante.
Uma passagem extremamente agradável — e que serve como exemplo para a personalidade de Sophy — é quando a jovem, ao chegar em Londres, decide adquirir uma carruagem própria e um parelha de cavalos para conduzi-la. Ao inquirir o primo sobre onde seria o melhor lugar para adquirir os cavalos, o homem não deixa de expor sua opinião sobre o assunto: uma carruagem não era veículo apropriado para ser conduzido por uma mulher e com certeza ela não compraria cavalos, mesmo ela dizendo que pagaria pelos mesmos. Uma personagem mais típica à época da história se resignaria e não efetuaria a compra; Sofia, ao contrário, não só compra o veículo, como prova ao primo que tem capacidade de sobra para conduzir os animais pelas ruas agitadas de Londres.
Trata-se de uma obra agradável e leve, divertida e muito bem escrita, com uma narrativa envolvente e bem descritiva, o que para aqueles que não são grandes estudiosos do período em que a obra se situa é um grande facilitador. A capacidade descritiva da autora permite que o leitor visualize os ambientes e as cenas com maior tranquilidade, e os personagens não deixam de ser agradáveis tampouco. A única coisa que faltou foi que a obra não desenvolveu o relacionamento amoroso de Sofia com seu par romântico, mas isso de forma alguma torna a obra insípida ou lenta. O retato da convivência da protagonista com os demais personagens acaba por compensar essa falta.
O livro A indomável Sofia é da autora Georgette Heyer. A versão em português está disponível pela Editora Record.
Originally published at www.siteladom.com.br on January 30, 2017.