A luta e a adaptação das mulheres trans aos padrões femininos

Natalie Majolo
Lado M
5 min readAug 13, 2015

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O que é ser feminina? Quem estipulou o que é ser mulher ou não? Costuma-se aceitar que os “padrões femininos” são os que a sociedade julga como “é de mulher”, ou aquilo que corresponde à “feminilidade” das mulheres. Para que uma mulher seja identificada como tal, sua aparência e ações devem ser condizentes com o padrão. Caso não se encaixe, a pessoa é estigmatizada socialmente; ela pode sequer ser vista como mulher, mesmo que se identifique como uma.

Esses padrões femininos não foram criados pelas próprias mulheres. O sistema patriarcal molda a sociedade a partir de uma visão masculina, em todos os âmbitos sociais — política, economia, entretenimento, entre muitos outros. Portanto, as mulheres não decidiram o que diria respeito a si mesmas. A sua “essência” é uma imposição masculina, construída por pessoas que não são protagonistas desta história.

“Eu sempre fui contra padrões estéticos, e definir um padrão para delimitar quem é mulher ou não, é um absurdo. Começo sempre questionando: o que é ‘ser feminino’ ou ‘ser masculino’? Tudo uma construção da nossa sociedade para tentar encaixar pessoas em caixinhas, e acabamos reproduzindo como se fosse algo natural. É mesmo natural o menino gostar de futebol, e a menina de boneca? Ou ensinamos — para não dizer que impomos — isso para as crianças?”, questiona Geovana Soares, de 21 anos. Sua transição se iniciou aos 17 anos.

A anatomia dos corpos não basta para ditar se determinada pessoa será homem ou mulher. Biologicamente, pode ser de um sexo definido, mas a verdade dos gêneros não está nos corpos. O reconhecimento precisa ser intrínseco, subjetivo a todas e todos. As pessoas transsexuais não se identificam com o gênero biológico, e decidem modificar seu corpo para que ele possa corresponder a como a pessoa verdadeiramente se discerne. Para um reconhecimento social — e não apenas pessoal -, os transsexuais modificam seu corpo, o adaptam ao padrão que, o gênero pelo qual se identificam, deve ter.

“Para sermos reconhecidas num mínimo como mulheres, precisamos estar 24 horas do dia maquiadas, em cima do salto, arrumadas dos pés a cabeça. E que mulher faz isso 24 horas do dia? Seja cis ou trans, que mulher se arruma o tempo todo, o tempo inteiro? Comento com muitas pessoas que meu sonho é sair de moletom e calça jeans e ainda sim ser reconhecida como mulher”, diz Ariel Nolasco, de 21 anos, que sonha começar o curso de ciências sociais em uma universidade pública. Sua transição começou há 9 meses.

Ariel também enxerga os padrões femininos um tanto quanto problemáticos: “Por exemplo, vendo de uma ótica de uma mulher trans, antes de transicionar eu tinha uma ideia do que é ser mulher, e quando transicionei, usei muito disso, desses signos. Porém, hoje em dia, percebo como existe esse peso, essa pressão social, em cima de nossos corpos”. E complementa que “esses padrões considerados femininos limitam muito nossa visão sobre a ideia de feminilidade, sobre mulheridade, e isso é um erro”.

A professora de filosofia Luiza Coppieters, de 35 anos, começou a usar hormônios femininos em 2012. Recentemente, passou por um grave caso de transfobia, que teve grandes repercussões. Ela afirma que os padrões femininos são uma construção histórica, assim como todos os outros são constituídos. “No nosso caso [mulheres], quem o constrói é o poder econômico e o poder da propaganda, que é um instrumento fundamental do modelo econômico que a gente tem. Como é uma construção, é possível desconstruir também. E isso depende das mulheres, do que é que nós queremos”, afirma.

Luiza acredita que mesmo quando uma mulher trans entra completamente nesse padrão, basta que ela diga que é trans que ela será excluída, não será mais considerada mulher. “A gente [mulheres trans] nunca vai ser reconhecida, por mais passável que a gente seja”. O termo “passável” significa ser reconhecida e aceita pela sociedade como a pessoa trans deseja. Quanto mais “passável” a pessoa, mais encaixada ela está nos esteriótipos de seu gênero. Luiza completa, “e essa lógica da ‘passibilidade’ que é perversa. Que discurso é esse que estabele ‘o que é ser mulher’?”.

Geovana, que participa de uma ONG chamada AMOSERTRANS (Associação e Movimento Sergipano de Transexuais e Travestis), também questiona: “Qualquer pessoa que foge desse padrão é logo repreendido e excluído da sociedade. É o que acontece com as pessoas trans. Nós questionamos o que é ser mulher ou o que é ser homem, e se é mesmo a genital que define isso”.

Os maiores desafios corporais para os encaixes

Os corpos que apresentam esse maior encaixe no padrão, implicam, portanto, num maior acolhimento da sociedade. Aqueles que não, são estigmatizados. Se isso se aplica às mulheres cis, quando aplicado às mulheres trans, tudo fica muito mais intenso. As críticas são muito mais duras.

Um grande questionamento do movimento feminista é sobre os pelos: para serem femininas, as mulheres só precisam ser elas mesmas e decidirem sobre seu próprio corpo — optando por ter pelos ou não. Entretanto, de acordo com o padrão, a feminilidade, só será alcançada caso eles não existam. “Enquanto mulher trans, eu não posso ter nenhum resquício de pelo, que logo ‘estou voltando a ser homem’, logo ‘não estou tentando nem ser passável’”, diz Ariel. Ela também afirma que outro desafio para as mulheres trans são os seios e os cabelos, mas que por causa do seu tratamento com os hormônios “eles tiveram um crescimento bem grande, e isso fica bem evidente pras pessoas”.

Para Luiza, a pior questão para uma mulher trans se encaixar, é a voz. “Se você não tiver uma voz que não te exponha, você consegue ter essa passabilidade. No meu caso, tem tudo: meu pé, minha voz, minha altura, enfim. O jeito como as pessoas me olham, as vezes eu me sinto uma aberração”, completa.

Geovana, que prefere não seguir esses padrões, sabe que pode sofrer mais preconceito por isso. “Por muito tempo reproduzi esse discurso que estava no corpo errado, que precisaria fazer várias cirurgias para adequar o meu corpo aos padrões. Hoje entendo que não tem nada de errado com meu corpo. Eu sou mulher, independente de ter um pênis ou ser careca. Posso até estar de terno que continuarei sendo mulher”.

A estima da sociedade cresce aos poucos. A luta trans é uma aversão à normalidade da ditadura do corpo. “Algumas pessoas ainda erram meus pronomes, outras acertam, outras são corrigidas e insistem no erro, outras pedem desculpas e começam a tratar certo. Mas tudo é questão de tempo, de corpo, de aceitação”, finaliza Ariel.

Originally published at www.siteladom.com.br on August 13, 2015.

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