A Origem do Mundo, um livro de urgência didática

Helena Vitorino
Lado M
5 min readFeb 7, 2019

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“A História Cultural da vagina, ou a Vulva versus o Patriarcado”

Este é o subtítulo de A Origem do Mundo, livro de Liv Stromquist. Em formato de HQ, o livro é da maior urgência didática que se possa imaginar: a de que pessoas saibam qual é a História da vagina. A história mesmo, a história cultural, com datas, narrativas, fatos e curiosidades. Assim como conhecemos a história das civilizações, a história da arte, a história das religiões, por que não conhecer A História da Vagina?

Antes desse livro, é meio inconcebível pensar “na história” narrada e transcrita da “vagina”, mas a literatura a respeito do órgão genital feminino sempre foi muito presente e argumentativa sobre o tema. O campo das ciências, da sociologia, religião e do comportamento cultural trataram do assunto de forma dispersa e correlacionada ao momento, à situação. O livro de Liv, no entanto, faz um compilado de todas as representações possíveis da vagina ao longo da história da humanidade, levando a conclusões fantásticas sobre tudo aquilo que sabemos (e que não fazemos a menor ideia) sobre como o patriarcado, o machismo e a interferência masculina moldou ao longo dos séculos a noção de mulheres sobre seus próprios corpos, e sua própria existência.

Homens que se Interessaram Demais pela Genitália Feminina

Com muita ironia e recheado de informações intrigantes, o livro inicia contando a história dos “Homens que se Interessaram Demais pela Genitália Feminina”; médicos, filósofos e historiadores e biólogos que dedicaram suas vidas e carreiras a nada menos que deliberar sobre a vagina, suas formas “corretas” de existirem (ou de não existirem).

Um exemplo é o médico John Harvey Kellog, responsável pela teoria de que doenças femininas eram causadas pela estimulação excessiva do clitóris. Para ele, o tratamento natural seria a remoção do órgão por aplicação do ácido corrosivo carbólico (a fim de evitar a masturbação feminina). Mas a interferência masculina não para por aí.

O tabu da vulva

Se aprofundando na questão cultural, a autora apresenta a ideia (e é impressionante como faz sentido assim que a ficha cai) de que a literatura não versa (nem desenha) a vulva da mulher, (a região externa da vagina), mas sim a esconde compulsoriamente. O termo “vulva” compreende toda a parte externa da genitália feminina (os pequenos e grandes lábios, a glande do clitóris e o clitóris, os pelos pubianos, períneo e a entrada da vagina). Mas basta observar qualquer livro de biologia ou fazer uma rápida pesquisa online, e veremos a representação do aparelho genital feminino POR DENTRO, e nunca (ou quase nunca) sua parte externa.

A partir desta pesquisa aleatória que apresenta 10 fotos de resultados é possível verificar que somente duas fotos apresentam a vulva. Todas as demais consideram o aparelho genital feminino como apenas o que está “por dentro”.

Esta literatura desacertada causa um enorme desserviço à população em geral. As meninas, ao iniciarem os estudos, não enxergam lábios vaginais nos livros didáticos; a genitália de suas bonecas é lisa, e apenas em algumas raras vezes tem um “buraquinho”. Essas mesmas meninas, ao se olharem no espelho e se depararem com seus lábios vaginais, caem em desespero com plena convicção de que são deformadas, e de que sua genitália é algo desprezível e anormal.

As bonecas infantis representam rudemente o corpo feminino: os seios não tem mamilos, e a genitália é inexistente. O “pudor” que a indústria de brinquedos anseia em preservar é o que confunde milhares de meninas em todo o mundo, que acreditam que sua região genital é deformada.

Por esta construção cultural da “vagina ideal” como sendo lisa, sem lábios e sem coloração específica, as cirurgias de remoção dos lábios genitais são assustadoramente comuns em meninas que atingem a puberdade. E o patriarcado está intrinsecamente ligado às noções distorcidas sobre os corpos femininos ao proibir que os meios representem a vulva como ela é.

Inversão de valores

O livro A Origem do Mundo traz ainda a perspectiva histórica sobre a vulva da mulher, contextualizando que a cultura de esconder, proibir e não falar sobre o corpo feminino é recentíssima. Na cidade grega de Elêusis, as mulheres gregas cultuavam a deusa Deméter, responsável pela agricultura e colheita, exibindo suas genitálias umas às outras enquanto comiam, bebiam e dançavam. As fábulas europeias do século XIX versavam que mulheres mostravam o sexo ao diabo para vencê-lo.

Gravura de Charles Eissen, ilustração de uma fábula de Jean de La Fontaine

A inversão de valores sobre o corpo feminino acompanhou momentos históricos, mas sempre foi baseada na dicotomia hierarquizada com o corpo masculino. Biólogos, por muitos anos, consideraram que a genitália feminina era uma versão “inacabada e imperfeita” do aparelho sexual masculino, inferiorizando o corpo da mulher. O médico Claudio Galeano afirmava que a genitália da mulher era como “os olhos de uma toupeira”, que apesar terem a mesma estrutura dos olhos dos outros animais, não prestavam para enxergar.

Menstruação

Por fim, A Origem do Mundo introduz o advento da menstruação como uma nova fonte cultural de opressão do patriarcado. Uma nuvem de fumaça da incerteza cobre todos os assuntos sobre a menstruação, tornando estressante e absurdamente difícil para uma jovem garota compreender o que o seu corpo passa a ser a partir da vinda daquela mancha de sangue.

Toda informação existente é estritamente técnica e complicada, ou velada e sussurrada, tornando o assunto um tabu, um mistério. A única coisa que fica realmente clara às meninas quando menstruam é que ninguém jamais pode ver seu sangue (porque ele é “sujo”), e que ninguém precisa saber que ela se encontra nessa “situação”. A menstruação passa a ser um período de vergonha e constrangimento, e as meninas passam a escondê-la a qualquer custo — mesmo não a conhecendo realmente.

A urgência didática do livro A Origem do Mundo está em justamente apresentar ao público porque sentimos tanta vergonha em falar sobre menstruação, ou porque temos tanto medo que uma menina virgem use um absorvente interno; o nome disso é ignorância proposital, e ela atende a um único responsável, o patriarcado.

As estruturas de poder como governo, religiões e até mesmo as famílias mantém a pouca e péssima informação sobre os corpos femininos com objetivo principal de controlá-los e de lucrar com eles. Afinal, uma mulher com repulsa à sua própria vulva fará de tudo para “consertá-la”, desde comprar produtos químicos que disfarcem seu cheio, à eliminação de seus lábios por completo.

Literaturas femininas e feministas como o livro de Liv vem na contramão do processo de desinformação, orientando que nós não somos nojentas e repulsivas como fomos ensinadas, somos apenas ignorantes de nós mesmas. E que a nossa vulva tem sim uma história, uma importante história, e que conhecê-la é parte de um processo de libertação complexo e necessário.

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