A primeira vez em um terreiro de Umbanda

Lado M
Lado M
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7 min readAug 27, 2015

Quando criança, quinta-feira era marcada como o dia em que eu tinha que aumentar o volume da TV o máximo possível, para não escutar o som temeroso dos tambores. Na rua de trás, havia um pequeno terreiro, no qual nunca ousei entrar, mas sua existência era impossível de não ser notada por causa do som, do temeroso som dos tambores. Uma vizinha portuguesa me alertava que aquele som não era de Deus e que eu me esforçasse ao máximo para não compreender suas ladainhas e não ser encantada como uma sereia. Meus pais, nessa época, frequentavam esporadicamente as missas de uma capela católica na mesma rua, e nunca sabiam responder minhas dúvidas sobre aquele lugar misterioso.

Ainda na infância, percebia que o lazer dos adultos, do meu bairro periférico, limitava-se a frequentar igrejas (evangélicas ou católicas) e bares. Para as crianças, restava acompanhar os adultos nas igrejas, brincar na rua sem asfalto, mas havia crianças como eu, que nunca machucavam os joelhos. Meus pais achavam as ruas inseguras e de fato eram.

Confesso que, um dia, me deixei levar e dancei de forma esquisita com o ritmo dos tambores, senti uma energia boa e não temi o castigo de Deus. Traquinagem de criança, Deus perdoa. De fato, aquele terreiro destoava da paisagem do bairro: havia muitos vasos de plantas em contraste com os tijolos expostos das casas, pessoas com colares coloridos entravam rapidamente pelas portas. Provavelmente vinham de longe, vinham de carro, não era meus vizinhos, porque estes não gostavam de lá.

Lembro também de uma loja de artigos religiosos de umbanda e candomblé no bairro comercial. Era como se o misterioso terreiro tivesse uma de suas portas sempre aberta e fosse possível ver as velas, as roupas, aquelas imagens que não pareciam em nada com a imagem de Deus da capela. Eu costumava atravessar a calçada, vai que dava azar. No fundo, eu tinha medo do desconhecido. Nenhum familiar comentava sobre esses assuntos nos almoços de domingo, e na escola meus colegas eram tão medrosos como eu — e se existia algum corajoso ele nunca se pronunciou, acredito que temia ser temido.

Anos mais tarde, o terreiro vizinho fechou suas portas — aliás silenciou seus tambores — e voltei a tratar a quinta feira como mais um dia qualquer. Nessa época, também entrei no curso de Letras, e já no primeiro dia sentei ao lado de uma colega que usava um pano branco na cabeça e vários colares coloridos. Hoje sei os nomes: ojá e guias de santo. Estar ao seu lado me causou desconforto, mas sua figura era parecida com a minha. Duas negras numa sala majotariamente branca. Ela também me causava conforto. Foi de sua boca que ouvi as primeiras palavras em yorubá, foi também dela que o medo e os preconceitos foram se transformando em curiosidade e representatividade. Ela me encantou mais dos que as sereias ao apresentar a uma estudante de Letras a mitologia dos orixás africanos.

Oxum, Oxóssi, Xangô, entre outros substantivos, adjetivos, significados, significantes: tudo isso se misturava com todo o mundo que a universidade me expandia. Mas lá também tive dessabores, passei por depressão, irmão preso, separação de pais, problemas para conseguir emprego. O encantamento aos estudos foi silenciado. Eu caí, eu me ajoelhei para rezar para que tudo aquilo passasse. Voltei a frequentar as missas, mas o padre lia os evangelhos e por algum motivo eu não o compreendia, via em meus amigos o entendimento, mas em mim não.

Peregrinei por muitas igrejas, templos budistas, e até entrei em um centro kardecista, mas morria de medo de espíritos, de vê-los, de ouvir suas vozes em minha cabeça. Porém, ao contrário do meu imaginário, centros kardecistas são muito silenciosos e eu gostava de assistir às palestras sobre reforma íntima e evolução espiritual. Até um palestrante musical aparecer e eu ter minha primeira experiência mediúnica. Sentada, fechei involuntariamente os olhos e senti um desprendimento da minha matéria, quando abri os olhos estava me vendo de cima sentada no mesmo lugar. Foi assustador, mas no fundo sempre fui uma medrosa-curiosa, e quis sentir aquela sensação. Quando voltei à “Terra”, procurei um médium da casa e relatei o ocorrido, e me explicaram que todos os seres humanos são mediúnicos, que eu tinha o livre arbítrio de me desenvolver espiritualmente e que seria importante iniciar meus estudos no kardecismo.

Bom, daí para frente me empenhei a estudar sobre religiões, meu sol em sagitário também explica sobre meus anseios em buscar conhecimento e me aventurar no desconhecido. Dos livros passei a querer ultrapassar portas e conversar com gente. Em uma busca rápida pelo Google, achei uma listagem de terreiros feita pelo sociólogo Reginaldo Prandi, que catalogou todos os terreiros do Estado de SP e encontrei um próximo a minha casa.

Curiosamente, suas giras são às quintas-feiras também. Há 5 anos, adentrei pela primeira vez uma porta de um terreiro. Lembro-me de olhar o rosto daquelas pessoas, muitas pareciam tristes e perdidas como eu, e outras felizes como meus amigos da capelinha. Entrei descalça, sem metais e com roupas brancas por cima do meu uniforme preto. Na recepção, as pessoas de guias me entregaram um nome de um médium e algumas explicações sobre o ritual. Lembro-me de sentir o chão de madeira acolhendo meus pés, do cheiro de ervas e flores, das cores vivas, do branco reluzente e dos benditos tambores. Abri os ouvidos e a consciência para as ladainhas, que nesse dia era de preto velho, na verdade um lindo ponto cantado:

Olha a fogueira
Olha o fogo
Olha o chão

Ouve o tambor repicando nas matas
Olha o Xirê
Pé de dança no chão

Alá lá ô
Olha o negro de cor
Lá na senzala negro chora de dor
E cada lágrima conta uma história
Uma história que negro passou
E cada lágrima conta uma história
Que sofrimento é sinal de amor

No centro do terreiro, os médiuns se organizavam em uma corrente. No ponto central, a mãe de santo da casa — que, ao contrário da minha imaginação, era uma mulher de estatura pequena, com guias, mas vestida de calça jeans e camiseta. Sua presença era forte — aliás vi em maior número mulheres, e, ao contrário de outros lugares, ocupavam espaços visivelmente de destaque.

No ritmo do tambor e o toque do adjá emitido pela mãe de santo, no centro do terreiro (conga) os médiuns giravam e já ganhavam formas e trejeitos diferentes. Passada a exaltação inicial, era a vez de adentrar uma porta invisível, trunqueira, que separa os médiuns da corrente as pessoas da assistência. Tomei um passe com uma preta velha. Na minha frente, via uma moça com aparência jovem, branca, de cabelos compridos, mas estava sentada com a voz embargada e uma vibração serena, lenta e velha. Ao seu lado um médium não incorporado que me ajudava a traduzir as palavras que não pareciam do nosso tempo, cambono. Ela falou das minhas angústias, parecia que adivinhava as palavras sem eu as pronunciar, foi ganhando minha confiança e eu a escutei como sempre fiz com os mais velhos. Passei a frequentar assiduamente as giras de quinta desse terreiro de Umbanda e fui a cada dia conhecendo melhor as outras linhas de incorporação, caboclos, baianos, boiadeiros, marinheiros, crianças. Trocava histórias com minha colega de sala que era do candomblé, fomos aprendendo sobre as peculiaridades de cada religião e nos aprofundando de nossa ancestralidade.

De trabalhos e passes desse tempo, fiz muitos banhos de ervas e flores, além de me conectar a natureza. Em dois anos tomando passe, as entidades me guiaram a fazer parte da corrente e a desenvolver minha mediunidade. Isso significava que me aprofundaria nos estudos religiosos, conheceria a organização do terreiro, ajudaria nos trabalhos de caridade da casa e também passaria a incorporar e, com o tempo, entraria na corrente.

Confesso que fiquei com medo de incorporar, receber espíritos, soltar meu corpo, controlar meu ego. Me imaginem no centro do conga com o coração fora do ritmo dos tambores, acelerado. As primeiras instruções para soltar a matéria, os primeiros passos: “pensem num campo da natureza”. As pedreiras da Serra da Capivara foram o que pensei, e quando a mãe de santo sinalou o adjá, tive a sensação de cair um raio caiu sobre mim. Fiz um movimento de solavanco, de repente não controlava meu corpo, e ele dançava ainda desajeitado com passos que com certeza não era eu quem guiava. Cada dia mais, firmava meu pé de dança e as entidades começavam a verbalizar. Sempre fui uma médium consciente, ou seja, lembro de todo o processo, apesar de estar incorporada.

Daí para frente continuo estudando sobre Umbanda, História, geofísica, astronomia, Filosofia, Literatura, Matemática. Afinal, para entender Umbanda é necessário estudar nossa casa: orixás são centelhas energéticas de Deus traduzidas em campos da natureza, bem como as falanges dos guias e seus arquétipos como os caboclos e pretos velhos.

Atualmente, fui coroada, e isso significa que as entidades que me guiam dão passes energéticos e estimulam o desenvolvimento espiritual de pessoas que procuram na Umbanda sua ligação com Deus. Meus pais continuam frequentando sua capela, mas confesso que não conto essa história para todos. Poucos sabem o que acontece por trás das portas de um terreiro e ainda fazem julgamentos intolerantes.

Espero que este conhecimento compartilhado seja chave para o respeito. Axé!!

Escrito por Simone Gomes, 28 anos, professora de língua portuguesa.

Originally published at www.siteladom.com.br on August 27, 2015.

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