A quarentena das mulheres: quando o coronavírus não é o único risco
Escrito por Luna Brandão
A pandemia da COVID-19 não é apenas uma questão de saúde pública. É um choque profundo para as sociedades e suas economias. E deve ser observada, sempre, através do olhar das mulheres. A situação que hoje vivemos nos diz muito sobre as desigualdades de gênero da nossa sociedade.
Aqui, temos que jogar um olhar especial para as mães solo, as chefes de famílias, as mulheres periféricas, as mulheres idosas, as pretas, as indígenas, as quilombolas. Em cada mulher, cabe um mundo. E dentro de cada mundo, uma realidade completamente singular, cheia de estratégias diferentes para encarar a pandemia e conseguir seguir as recomendações da OMS de isolamento social.
Violência Doméstica
A violência doméstica não é um problema novo na sociedade brasileira e a quarentena pode significar ficar em casa o dia todo com seu agressor. Dados da pesquisa Mulheres Brasileira nos Espaços Público e Privado, publicada em 2010, apontam que a cada dois minutos cinco mulheres são espancadas e que 80% dos agressores são pessoas com quem as vítimas se relacionam afetivamente: maridos, companheiros, noivos, namorados e ex-parceiros.
Períodos de epidemia potencializam os casos de violência doméstica contra as mulheres. Isso aconteceu no continente africano, por conta do ebola; no Haiti, por conta do cólera; e agora na China, por conta da COVID-19. No Brasil, as denúncias de violência doméstica registradas pelo 180 aumentaram 17%. O Ministério Público do Estado de São Paulo aponta uma aumento de 29% nos pedidos de medidas protetivas de urgência, quando comparado o período de fevereiro e março de 2020. Nestes mesmos meses de pandemia houve um um aumento de 51,4% nos autos de prisão em flagrante por violência contra mulher.
O presidente Jair Bolsonaro utilizou um retrógrado ditado popular — “Em casa que falta pão, todos brigam e ninguém tem razão”- para justificar o aumento da violência contra mulher. Pelo visto, o que o presidente finge que não sabe, é que uma parcela considerável da população feminina brasileira vive em “casas que faltam o pão”.
Desemprego e informalidade
O desemprego e a informalidade também são uma questão de gênero e raça. O percentual de mulheres sem trabalho é maior que o percentual de homens e as mulheres são a maioria da população no mercado de trabalho informal. Além dos homens, em média, ganharem 29,7% a mais que as mulheres na mesma função.
No cadastro único do governo federal, porta de entrada para os benefícios sociais para as pessoas em situação de vulnerabilidade, como a Renda Básica Emergencial, estão inscritas 41.874.598 mulheres. São quase 30 cadastradas, em cada 100 mulheres paulistanas. A despeito da gigantesca exclusão do acesso à internet no nosso país.
Os cuidados com a casa e com os filhos já recaía sobre as mulheres brasileiras. Em 2016, elas dedicavam 73% a mais do seu tempo com os cuidados dos familiares e/ou afazeres doméstico que os homens. Como fica este trabalho, invisível, em tempos de quarentena? Quem é responsável pelo trabalho doméstico em tempos de isolamento social?
Além disso, a sobrecarga psicológica afeta mais as mulheres que os homens na pandemia. Segundo a Kaiser Family Foundation, 53% das mulheres entrevistadas tiveram o emocional abalado de alguma forma no fim de março. Na maioria das famílias, as mulheres acumulam diferentes atividades e têm uma jornada dupla, por vezes tripla. Em momentos como esse, em que o desemprego aumenta, os salários caem e as mulheres são forçadas a ficar em casa (muitas vezes criando seus filhos sozinhas), o peso da responsabilidade recai em ombros femininos. Não à toa, as mulheres são as mais preocupadas com a quarentena. Segundo o novo Datafoha, 71% das mulheres consideram que, agora o mais importante é manter as pessoas em casa para impedir que o vírus se espalhe, mesmo que isso prejudique seus salários e seus empregos.
Na guerra contra o coronavírus as mulheres sofrem, e não são meras vítimas da doença. São vítimas da violência, do descaso do Estado, da precarização do mercado de trabalho, da desigualdade de gênero. Mas também somos resistência. Estamos no front desta batalha.
As profissões associadas ao cuidado são vistas tradicionalmente como femininas, mas fato é que as mulheres estão na linha de frente dos serviços emergenciais. Enfermeiras, assistentes sociais, médicas e outras profissionais que não puderam parar porque seu trabalho é fundamental na luta pela vida — ainda mais em tempos de crise de saúde pública.
Eu escolhi o front da política e dos movimentos sociais. Aqui, também estamos resistindo. No início da quarentena, quando surgiram as primeiras recomendações de isolamento social, eu e outras jovens mulheres (e jovens homens também) de universidades e da Rede de Cursinhos Elza Soares, presenta nas periferias de São Paulo, montamos uma rede para auxiliar a população em situação de vulnerabilidade: a rede Solidariedade Pra Mudar SP. Já foram mais de 20 toneladas de alimentos doados, além de milhares de kits de higiene.
Conseguimos o apoio de mulheres influentes, como as atrizes Bárbara Paz e Mel Lisboa, a filósofa Djamila Ribeiro e a diretora Petra Costa para o lançamento do nosso vídeo de divulgação. Desde então, mais de 30 mulheres influentes das áreas da cultura, movimentos sociais, saúde e educação se juntaram a nós. Hoje participam também as atrizes do seriado Sintonia, do Netflix, criado e dirigido por KondZilla. Danielle Olímpia, Bruna Mascarenhas, Júlia Yamaguchi, Rosana Maris e Fernanda Viacava Cito fizeram um vídeo lembrando a situação das mulheres nas periferias de São Paulo em meio à pandemia. Os bairros periféricos são, hoje, os mais afetados pelas mortes e pela subnotificação.
Somos também centenas mulheres anônimas, trabalhando em toda a logística da Rede de Solidariedade, recebendo e distribuindo as doações por toda a cidade, pesquisando dos impactos e consequências da COVID-19, produzindo textos, vídeos e conteúdo para nossa rede. Centenas de mulheres, inclusive eu, dividimos a trincheira da guerra contra o coronavírus. Mulheres, que estão viralizando solidariedade e informação. E que estão ajudando outras milhares de mulheres, de dezenas de bairros e comunidades de São Paulo, em situação de vulnerabilidade, a seguirem suas vidas.
Saiba como ajudar
A Rede Solidariedade Pra Mudar SP foi criada com o intuito de auxiliar os mais vulneráveis nesse momento.
Precisamos de doadores e voluntários!
Recebemos e distribuímos doações de itens básicos de higiene e alimentação. Além de uma plataforma online para doações. Clique aqui e confira.
Luna Brandão (@lunapramudarsp) é cientista política de formação e feminista com convicção. É educadora popular e coordena a rede de cursinhos populares Elza Soares. Atualmente, é porta-voz e uma das idealizadoras da rede Solidariedade Pra Mudar SP (@spcontraocoronavirus)