A rotina do assédio

Tatiana Luz
Lado M
Published in
2 min readJul 23, 2018

--

Era uma segunda-feira ensolarada, mais uma como outra qualquer. Abri os olhos não como no dia anterior, mas como faria nos próximos quatro dias. Missão: chegar no horário na faculdade. Calcei os chinelos ao ritmo todo-dia-ela-faz-tudo-sempre-igual e me dediquei à missão como se fosse a única.

A chave entrou na fechadura como entrou em mim um frio na espinha ao lembrar da segunda missão. Para esta o pronome era outro, pois todo dia ELES fazem tudo sempre igual.

Vinte e cinco passos até a primeira parada da rotina do assédio: o hospital na rua de minha casa. Paciente? Funcionário? Médico? Acompanhante? Prestador de serviços? De quem viriam as palavras ásperas e os olhares desta vez? Mais de duzentos passos e chego à segunda parada: o posto de gasolina. Recostados no poste de luz, os frentistas se fazem de avaliadores da mercadoria. É preciso analisar cada centímetro da peça. Oitenta e três passos e, finalmente, a última: a construção.

O semáforo vermelho me separava do ponto de ônibus, ou melhor, do fim da segunda missão, pois como embarco todos os dias no mesmo ônibus, motorista e cobrador já são meus amigo de infância. Assim, quando entro no terminal Ana Rosa estou segura.

Mas, naquele dia, não foi assim.

Ao passar meus olhos pelos trabalhadores e estudantes, quase íntimos pela nossa proximidade física, um dos olhares não se desvencilhou do meu. Durante longos minutos, não consegui sair do lugar em que estava e meus movimentos foram cerceados por aqueles olhos insistentes. A cada segundo, um pedaço de minha carne era devorado por eles. Consegui passar a catraca e, por um momento, achei que eles haviam ido embora. O suspiro de alívio foi interrompido quando aquelas órbitas castanhas e esfomeadas passaram ao meu lado e se sentaram no banco de trás. Tentei sinalizar ao cobrador, tentei falar alguma coisa, mas os olhos já tinham comido minha coragem.

O ônibus foi se esvaziando e eu podia sentí-los quentes em meu pescoço, o medo já tinha me dominado. E se ele descesse no mesmo ponto que eu? Levantei para sair na próxima parada. Virei o corpo lentamente temendo o encontro. Ao direcionar o olhar para os bancos traseiros percebi que eles não estavam mais lá. Não foi dessa vez. Mas poderia ter sido, já que ao nascer mulher deixei no útero de minha mãe minha liberdade.

Oito horas em ponto eu estava na faculdade. A missão fora cumprida com sucesso.

--

--