A sexualidade se herda de mãe para filha

Gabriella Feola
Lado M
Published in
6 min readSep 28, 2018

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São as mães, na maioria das vezes, quem se encarregam de preparar os filhos para a vida sexual

Se a gente for pensar onde e quando foi que aprendemos sobre sexo, podemos chegar a várias respostas possíveis: quando aprendemos de onde vem os bebês, ou como que o intercurso se dá, quando aprendemos sobre preservativos ou até na prática sobre como se faz. Aprender sobre a nossa sexualidade e sobre práticas sexuais não é uma coisa que acontece em um dia ou dois.

Dos muitos fatores envolvidos nesse aprendizado — escola, família, religião, cultura, amigos, mídia — o papel da mãe é inegável. A pesquisa Gravad aponta que a primeira fonte de informação sobre relações sexual, gravidez, contracepção e DSTs/Aids, costumam ser as mães: no caso das mulheres, 41% aprenderam com as mães o que era o sexo, 8% aprenderam com o pai. Mesmo em relação aos garotos, a mãe ainda é uma fonte de informação sobre a sexualidade mais presente que a figura paterna.

A pesquisa também aponta que a primeira menstruação — a menarca — acaba servindo como oportunidade para mães abordarem alguns temas com as filhas: funcionamento do corpo, da reprodução, a necessidade de preservativos, entre outros. Essa conversa acontece antes da menstruação em 70% das famílias nas quais mães têm ensino médio completo ou superior e em 35% das famílias nas quais as mães têm ensino fundamental incompleto ou nenhuma educação. Nesse último grupo, 40% das mulheres nunca chegam a receber informações sobre relações sexuais vindas da mãe.

É comum que famílias enxerguem nas professoras da escola, profissionais mais instruídas e capacitadas para lidar com o tema e, portanto, esperam que a escola forneça este tipo de informação. De fato, uma porcentagem bem relevante do jovens receberam suas primeira informações sobre as relações sexuais na escola: 27% das mulheres e 18% dos homens.

Dois dados são muito importantes para a gente se aprofundar na questão. Primeiro, entender que estamos tratando sobre “de onde vem as primeiras informações sobre sexo, reprodução e prevenção”. No entanto, o aprendizado e o desenvolvimento da sexualidade acontece muito antes disso e de maneira contínua, através do convívio com a cultura relacional de cada sociedade. O segundo, entender que na escola 80% do corpo docente brasileiro é composto por mulheres. Ainda quando não são as mães, informar sobre reprodução e prevenção acaba sendo uma tarefa feminina.

Ao tratar do início das relações sexuais, a pesquisa Gravad mostra como essa primeira vez é um evento completamente diferentes para homens e mulheres. Esse é um ponto importante para entendermos como a construção da sexualidade muda de acordo com o gênero.

Se os meninos se preparam para uma experiência de resolução da curiosidade, as garotas são instruídas — pela família, amigos, igreja e escola — a se proteger. É preciso se proteger emocionalmente para não ser simplesmente usada pelo garoto, é preciso proteger sua reputação, proteger sua virgindade, é preciso se prevenir contra gravidez, doenças e ilusões.

Diante de toda essa preparação generificada para o sexo, as sensações experimentadas durante o ato também são muito diferentes:

Durante a relação sexual o/a entrevistado/a sentiu:

Enquanto o trio de sensações experimentadas pela maioria das mulheres forma um panorama negativo — medo/dor/nervosismo — o trio de sensações experimentadas pelos homens se revela bem mais atraente — nervosismo/satisfação/excitação.

As conversas com as mães ainda se mostram muito relevantes para pôr em prática a contracepção.

As mulheres que receberam de sua mãe as primeiras informações sobre gravidez, tendem a falar mais facilmente com o seu parceiro na hora de negociar e cobrar o uso do contraceptivo.

Sobre tudo isso, é importante compreender que “a trajetória social dos indivíduos vai influenciar os comportamentos sexuais das mulheres e dos homens de maneiras diferentes”. E que o modo de se comportar, quando acaba se tornando diferente, não indica uma natureza feminina a ser mais afetiva e menos sexual, nem uma natureza masculina que indique o oposto. O que percebemos é a construção do comportamento e da sexualidade ao longo das trajetórias.

Compreender que os indivíduos desenvolvem comportamentos de acordo com o seu cenário cultural, moral e familiar não significa que ele não foi moldado e que não tem como escapar dessa imposição, nem significa que esses preceitos sociais são simples de ser deixados de lado.

O repertório passado de mãe para filha na construção da sexualidade

Capa do livro “Amulherar-se”

É sobre todos esses pontos que conversamos que eu escrevi o livro Amulherar-se. O livro conta as histórias reais mulheres — mães, avós e filhas — de quatro famílias diferentes. O livro é uma reportagem literária que investiga como, nas pequenas coisas, as mães educam as filhas e acabam influenciando e contribuindo para a formação da sexualidade destas últimas. Ao mesmo tempo, o livro também mostra como essa construção muda de geração para geração, de região para região, de família para família.

A ideia era entrar bem fundo na história dessas pessoas e ver como elas foram aprendendo e construindo suas sexualidades: se relacionando, tornando-se mulheres, algumas mães, tendo filhos, tomando as decisões de como ensinar suas próprias filhas. Todas essas histórias mostram como o “ser mulher” nos afeta diariamente, em pequenas e em grandes coisas.

Todas essas histórias também mostram o que muitos estudos da área de educação sexual e psicologia já dizem: a sexualidade não se aprende naquela aulinha da escola, não se aprende com um filme ou com uma cena de novela, não se aprende naquela conversa sobre de onde vem os bebês. Não. A sexualidade é ensinada diariamente com atitudes pequenas que vão formando um bolo complexo de “como supostamente deveríamos nos comportar”.

Todas essas histórias mostram também que nossas mães, as responsáveis por dizer “não”, por proibir, por vigiar, também costumam ser as responsáveis por nos libertar de amarras que nem chegamos a conhecer.

Se as mulheres são as responsáveis por criar, serão elas as responsáveis por permitir e proibir. Dois verbos que estão extremamente conectados a estes outros dois: preparar e proteger.

Herança não é intocável

Sobre o aprendizado da sexualidade e sobre as histórias do livro, podemos entender que sim, sexualidade é algo que se aprende continuamente e com muita influência da cultura social na qual estamos imersos. No entanto, os ensinamentos e os conceitos que herdamos da nossa família, do círculo de amigos, da nossa criação, não é nada que não se mude. Na verdade, é um emaranhado de conceitos que está em constante mudança, e que, na verdade, não é herança porque não passa e fica. Não é só de mãe para filha, do mais velho pro mais novo. Não, a troca é constante, e as filhas têm um potencial de influência imensa sobre as gerações mais velhas.

Sobre o livro

O livro está disponível para venda no site da Amazon (somente versão e-book)

Amulherar-se : o Repertório passado de mãe para filha na construção da sexualidade femininaR$ 9,90
Autora: Gabriella Feola

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Gabriella Feola
Lado M

Jornalista meio empreendedora, autora do livro Amulherar-se, cursa mestrado na Universidade de São Paulo, estudando Comunicação e Educação da sexualidade.