Funk e Feminismo: “agora virei puta e você vem falar de amor?”

Lado M
Lado M
4 min readMar 18, 2014

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Há alguns anos, vemos uma onda de funkeiras que vêm fazendo cada vez mais sucesso. Muitos irão afirmar que não há o que se surpreender, considerando que o funk é “A Voz da Periferia” e que os indivíduos das classes D e E se vêem retratados nas letras e, consequentemente, são os maiores consumidores desse tipo de música. Contudo, o que está surpreendendo é que os funks que estão fazendo sucesso não são os mesmos de outrora: o ritmo, o apelo sexual, a revelação de uma vida não idealizada ainda está presente, só que o eu-lírico e os problemas e dilemas narrados nas letras de funk são outros. E nem o seu público é tão o mesmo.

Em um espaço que, anteriormente, tinha lugar apenas para letras sobre tráfico, conflitos com a polícia ou sobre a conquista sexual masculina e posse feminina pelo macho alfa, estão surgindo cada vez mais letras feitas por e para mulheres, que relatam o seu cotidiano de luta travada em casa e no trabalho. São histórias de mulheres que, cansadas de serem maltratadas, inferiorizadas ou vítimas de violência física, resolveram se separar de seus algozes. Paralelamente, essas mesmas mulheres que, antes, eram sufocadas por valores morais impostos pelos esposos — ou por elas mesmas -, agora começam, aos poucos, a descobrir a sexualidade como algo que deve satisfazê-las tanto quando ao homem.

Não é de se assustar que essas músicas façam sucesso nos locais de origem de suas autoras, porque a relação de espelhamento de realidade é muito grande. O que pode ser surpreendente, entretanto, é que esse som começou a ganhar adeptas das classes média e alta. E eis que surge a questão de por que as mulheres “estudadas” estariam cedendo a esse ritmo de mulher que não se dá ao respeito falando de sexo, a esse som de ralé da periferia?

Antes de mais nada, é importante entender que periferia é um conceito relativo, financeiro e ideológico, não geográfico. A periferia varia da localidade e dos ideais e valores financeiros estipulados de pessoa para pessoa.

E eu lhes pergunto: por que é feio ou ofensivo ouvir, por exemplo, a Valesca Popozuda falar que “quer dar”, que quer ter orgasmos? A questão vai muito além da Valesca, de mim ou de você. Na verdade, isso começou há muito tempo, quando alguém achou que seria uma boa ideia dar uma boneca para uma menina, assim como um conjuntinho infantil de panelas. Nesse ato tido como ingênuo está toda uma idealização da mulher. Em apenas dois brinquedos conseguimos reduzir séculos de submissão: a mulher é feita para ter filhos e cuidar da casa. E ponto.

Aí, vem a Valesca, de novo, mostrar que as coisas não tem que ser assim:

“Eu passava, eu lavava e tu não dava valor/ Só me dava porrada e partia para farra/ Eu ficava sozinha esperando você/ Eu gritava e chorava que nem uma maluca/ Valeu, muito obrigada/ Mas agora virei puta”.

Repare que a sociedade se choca muito mais com os versos exigindo liberdade sexual do que com a violência doméstica.

E, ainda assim, as mulheres finas e elegantes da alta sociedade se reconhecem nas letras que são aparentemente o oposto da sua realidade. No livro Assassinatos de Mulheres e Direitos Humanos, da professora Eva Blay, ela diz que o registro da violência contra a mulher no Brasil é parcial. Isso porque a quase totalidade das ocorrências registradas em delegacia vem das mulheres de camadas baixas, enquanto as mulheres de camadas altas tratam no divã a violência doméstica que sofrem. Estas mulheres podem e preferem pagar um analista do que registrar um B.O.

Já as mulheres da periferia, não. Elas são as chefes de famílias. Graças à ausência masculina nos lares, elas se tornam as responsáveis por cuidar não só dos filhos e da casa, como também assumem as responsabilidades masculinas. No ano 2000, 22,2% das famílias eram chefiadas por mulheres. No ultimo censo, em 2010, o índice se chegou a 37,3%.

Quando a mulher sai de casa, adquire responsabilidades. Ela sabe o seu valor e não admite homem nenhum — seja filho, amigo, namorado ou marido — erguendo a voz e a mão dentro e fora de casa. Não são como as bobinhas mocinhas românticas dos livros de José de Alencar, que pensavam que é melhor um homem que trai e machuca do que homem nenhum. E o melhor: as mulheres de hoje aprendem a destemer julgamentos, olhares e possíveis xingamentos.

O funk é a voz dessa mulher que assume a sua sexualidade com louvor. Que, assim como o homem, é capaz de dizer que quer e que gosta de sexo. Que não é vulnerável, que não teme a fama de piranha, puta, vadia ou vagabunda porque ela sabe ser “rainha do seu tanque”.

A invasão das MCs mulheres veio para destronar o espaço musical em que o homem inferiorizava, xingava e humilhava abertamente a mulher. Mais do que escravas sexuais e muito mais do que empregadas, as mulheres já se posicionaram como independentes em diversas épocas e áreas, chegando o momento de ratificar isso na música de periferia também. E enquanto alguns reclamam do barulho que o grito de liberdade tem provocado, nós, mulheres, só temos a agradecer por trazer o assunto da sexualidade e do prazer feminino às rodas de conversa de amigos e familiares, ainda que, para isso, as autoras sejam queimadas vivas na fogueira do moralismo como bruxas da Idade Média.

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Originally published at www.siteladom.com.br on March 18, 2014.

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