Photo by Tobias Tullius on Unsplash

Alcoolismo feminino no Brasil: preconceitos desafiam as mulheres dependentes

Carolina Pulice
Lado M
Published in
9 min readFeb 17, 2021

--

Redes de apoio auxiliam dependentes em país que aumenta o consumo abusivo de álcool a cada ano

“Quando um homem é alcoolista, a família o acolhe e diz que ele precisa de cuidados. Mas a mulher alcoolista não pode ser internada, porque precisa cuidar da casa e dos filhos. A preocupação com a mulher não é com seu alcoolismo, mas com sua funcionalidade”.

Assim conta Cecília sobre seu principal desafio para encarar a dependência do álcool: ser mulher.

Para ela e tantas outras, o simples fato de ser mulher pode agravar o quadro e o tratamento da dependência ou do abuso de álcool que acometeu mais de 1,6% da população feminina em 2016, segundo dados da Organização Mundial da Saúde.

Mais de 10 mulheres ex-usuárias de álcool foram entrevistadas para esta matéria, e todas apontaram para algum tipo de relação entre sua dependência, o machismo e o preconceito que sofreram e sofrem ainda hoje.

“Meu ex-marido não chegava a ser alcoolista, mas bebia tanto ou mais do que eu. Mas quem chamava a atenção era sempre eu. Eles [meus filhos] não têm preconceito contra o pai, inclusive começaram a beber com ele. Mas se me vissem com um copo na mão, já me davam bronca”, conta Adriana.

A história ganha traços semelhantes na reunião de Alcoólicos Anônimos da qual participei. Em uma sala no bairro de Santana, zona norte de São Paulo, seis mulheres se reúnem para compartilhar e se fortalecer no tratamento contra a dependência do álcool.

A sala é arejada, com pouco mais de 20 cadeiras. Aos sábados, é reservada somente para mulheres que fazem daquele espaço de aproximadamente 20 metros quadrados seu refúgio para tratar uma doença pouco falada, mas que tem acometido cada dia mais mais mulheres no Brasil.

Adélia* me convidou para participar da reunião. Sóbria há mais de trinta anos, ela afirma ter passado por mais de 6 internações e diversos episódios de apagamento antes de aceitar a ajuda de Alcoólicos Anônimos. Aposentada, hoje sua tarefa é ajudar os outros e espalhar a palavra do tratamento de AA, auxiliando outros dependentes. “Só cheguei aos 63 anos porque parei de beber aos trinta”, afirma.

As “jardineiras” do coletivo Alcoolismo Feminino são aquelas que apoiam as dependentes recém chegadas. Foto: Reprodução

Malefícios do excesso de álcool

O uso prolongado de álcool está associado com diversas doenças, como demência precoce, infertilidade, cirrose hepática e neuropatia. Além disso, o álcool pode ser um fator de risco para pessoas com câncer de fígado, de pâncreas e do sistema digestivo. Na mulher, o uso excessivo de álcool também pode aumentar o risco para câncer de mama e doenças cardíacas.

Estudos mostram que o consumo de álcool entre as mulheres tem aumentado cada vez mais no Brasil e no mundo não só em relação à quantidade, mas também à frequência.

Além do consumo abusivo (a medida do BPE — Beber pesado episódico — indica um consumo abusivo acima de 4 doses em uma só ocasião, o equivalente a dois litros de cerveja ou uma garrafa de vinho), as mulheres têm sido cada vez mais vítimas da dependência do álcool. Entre 2006 e 2008, o consumo de álcool entre as mulheres apresentou maior crescimento do que o consumo entre os homens no mesmo período, de acordo com o Ministério da Saúde.

Além disso, um estudo publicado pelo Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa) apontou que, entre 2010 e 2018, houve aumento de 19% no número de internações relacionadas ao uso de álcool entre as mulheres, para mais de 100 mil ante 85 mil.

Outro dado preocupante mostra que a diferença entre homens e mulheres dependentes diminuirá progressivamente até 2030, quando a proporção será igual.

O que tem levado as mulheres a consumirem mais álcool? De acordo com a psiquiatra Livia Beraldo, que trata de pessoas com dependência ao álcool, vários fatores sociais fizeram com que este consumo aumentasse.

“A mulher tem se inserido mais no mercado de trabalho, tem maior carga de estresse, acumulam mais funções dentro e fora de casa”, aponta a médica.

Machismo e alcoolismo

A vontade de “espairecer” é uma das expressões mais usadas pelas depoentes. No entanto, não é a única, e infelizmente outros depoimentos deram conta de entender que a dependência do álcool também estava associada à traumas de infância, estupro, depressão e dependência a outras drogas.

“Existe uma relação direta entre violência doméstica e alcoolismo, seja da mulher ou do homem”, exemplifica a psicóloga Cláudia Leiria, uma das fundadoras do coletivo Alcoolismo Feminino. “A violência entra melhor no quadro de alcoolismo, porque há uma permissão maior”, continua.

Cecilia é um exemplo de quem usou o álcool “para esquecer”. “Fui agredida pelo meu ex-marido na frente dos meus filhos, e achava que o álcool era bom porque eu não precisava lidar com aquilo”, conta.

No outro lado da moeda, o fator ser mulher também pode pesar para aquelas que acabam consumindo álcool de maneira exagerada. Questões fisiológicas e de rotina parecem permear cada vez mais o pensamento das mulheres que sofrem com a dependência.

“A mulher tem filhos, menstruação, TPM (Tensão Pré Menstrual), tem emoções de uma forma diferente da dos homens”, aponta Grazi Santoro, idealizadora e fundadora do coletivo Alcoolismo Feminino (@alcoolismo_feminino ).

Apesar da identificação para além do gênero, os depoimentos colhidos mostraram que o machismo é um fator crucial no tratamento da dependência.

“O machismo atrapalha em tudo. As pessoas caem em cima da mulher para aniquilar, com preconceitos, maledicência”, afirma Silvia, que participava da roda de conversa de AA.

“Meu marido gostava quando eu bebia, porque eu ficava mais permissiva, mais aberta para o sexo. E o pai dos meus filhos alimentava minha doença. Quando eu não bebia eu era mais moralista, mais séria, ele dizia”, afirma Adriana.

O termo “alcoólatra”

“É uma doença tratada com muito preconceito. Muitas vezes julgamos e a incentivamos por desconhecimento”, explica a psicóloga Camila de Sene, presidente da Junta de Custódios de Alcoólicos Anônimos no Brasil.

O próprio termo alcoólatra é uma mostra do preconceito que ainda ronda a doença. Conforme explica Grazi Santoro, do Alcoolismo Feminino, “alcoólatra” é um termo usado de forma pejorativa durante anos, e que por isso os termos a serem usados são alcoolistas ou alcoólicas, pessoas que sofrem de alcoolismo, doença biopsicossocial, crônica e sem cura. “Além disso, o sufixo “atra” remete ao significado de adorador do álcool”, explica.

No quadro social de preconceito e desconhecimento, a mulher também é quem mais sofre. De acordo com Camila, embora o número de mulheres frequentando AA tenha aumentado, ainda é pequeno e há muita insegurança e medo da exposição durante as reuniões.

“O que para nós é importante é que, como o número de mulheres vai se equiparar ao número de homens dependentes do álcool até 2030, é importante que a procura por ajuda aumente também”, afirma.

Tratamentos

Uma doença muitas vezes pode revelar o melhor e o pior do ser humano. No caso dos depoimentos ouvidos para a matéria, o melhor se sobressai quando se fala sobre como tratar o alcoolismo entre mulheres.

Durante a reunião de Alcoólicos Anônimos, o que imperou foi o silêncio respeitoso, o acolhimento e agradecimento daquelas que lá estavam falando sobre suas experiências.

Este é, inclusive, um dos pilares de AA. No programa de 12 passos, base fundamental do grupo, o décimo segundo trata de “transmitir esta mensagem aos alcoólicos e praticar os princípios em todas as nossas atividades”.

As reuniões exclusivas de mulheres são um experimento que tem dado certo. Embora minoria — a cada nove homens, há uma mulher participando dos encontros—, as mulheres demonstram mais disciplina e vontade de superar a doença, afirma Camila.

Criado no início de 2020, o coletivo Alcoolismo Feminino já atendeu mais de 600 mulheres em quase todos os estados, e atualmente auxilia na recuperação de mais de 300 mulheres.

“Eu decidi ajudar porque queria falar que era alcoolista, não era piranha nem mal caráter, que eu tenho sim uma doença. A mulher dependente está doente, se sentindo envergonhada, sendo maltratada muitas vezes pela família, pelo marido, está amedrontada, escondendo a garrafa no armário de casa”, conta Grazi sobre o motivo que a levou a criar o coletivo.

Com a participação de uma psicóloga e com o apoio das “jardineiras”, os grupos de WhatsApp funcionam diariamente, das 9 horas às 22 horas e acolhem aquelas que precisam de mais ajuda, além dos horários das reuniões.

Jardineira há mais de um mês, Cecília explica que auxiliar os grupos de mensagem foi fundamental para sua recuperação. Sóbria há mais de sete meses, ela explica que “estar junto com essas mulheres, me identificar com elas e passar a verdade que há uma vida sem álcool” é, para ela, a “base da sua recuperação”.

Há casos em que há necessidade de acompanhamento psicológico ou psiquiátrico, e estudos apontam que a prática de exercícios físicos também auxilia na recuperação das pessoas com dependência. Mas o que se provou importante e necessário em todos os depoimentos foi o ato de falar, ser ouvida e ser respeitada.

Sala de Reunião de AA, na cidade de São Paulo. Aos sábados, grupo exclusivo para mulheres se reúne para compartilhar experiências com a dependência. Foto: Carolina Pulice

Pandemia

A pandemia impactou a forma como o tratamento e a abordagem se davam. Porém, tanto o grupo de AA quanto o coletivo Alcoolismo Feminino mostraram que é possível ajudar mesmo à distância.

Embora o contato físico tenha sido apontado como essencial para muitos dependentes, os relatos de reuniões virtuais também se provaram positivos, principalmente entre as mulheres.

De acordo com Camila de Sene, da AA, as reuniões virtuais começaram em março de 2020, e foi possível perceber uma alta adesão, especialmente de mulheres: durante a pandemia, quase 40% das ingressantes no AA foram mulheres, e elas aderem mais e são mais disciplinadas, afirma a comunidade.

“As mulheres têm mais medo da exposição, têm mais dificuldade de iniciar o seu tratamento. Com a plataforma de tratamento à distância, o acesso da mulher aumentou. Podemos imaginar que ao assegurar o anonimato, isso garante mais segurança para que ela busque sua recuperação”, afirma.

Alcoolismo Feminino completa 1 ano e já atendeu mais de 600 mulheres brasileiras. Crédito: Divulgação

Debatendo o consumo abusivo e a dependência

Verão, como é conhecida, é uma mulher alta, de longos cabelos ondulados negros. Com corpo sarado, peitos e bunda grandes, ela é a garota propaganda de uma grande marca de cerveja brasileira. Verão está na praia, na maior parte das vezes de biquíni ou shorts e manga curta. E sempre com uma latinha de cerveja na mão.

Vera é uma mulher que parece estar feliz, curtindo o verão brasileiro. Na praia, rodeada de amigos, com música e muita curtição.

Mas será que a Vera é feliz por estar bebendo com seus amigos?

Será que ela precisava estar com aquela latinha de cerveja na mão para curtir seu verão?

Dentro de cada latinha de cerveja, taça de vinho ou shot de vodca podemos encontrar a resposta para estas perguntas.

O consumo de álcool entre as mulheres é um tabu de décadas, mas sua maior adesão pode e deve ser uma janela de oportunidade para discutir o consumo recreativo de álcool e os perigos para o consumo abusivo e a dependência.

As mulheres dependentes e que fazem o uso abusivo precisam de ajuda e precisam ser respeitadas por suas famílias, amigos, companheiros e companheiras.

Elas podem ser a Vera da propaganda, podem ser nossas mães, amigas, irmãs. Podem ser nós mesmas, vulneráveis, recorrendo a uma substância que as ajude a esquecer os problemas, sejam eles pequenos ou maiores do que se pode suportar.

O alcoolismo é uma dependência que tem tratamento, que precisa ser encarado pela sociedade como uma questão a ser combatida e não exaltada, e que aqueles que são dependentes podem buscar ajuda e devem ter todo o acolhimento necessário dentro e fora de casa, para que possam continuar suas vidas, seus sonhos e planos.

Como Cecília e Adriana, jardineiras do Alcoolismo Feminino, que hoje semeiam e colhem sonhos, planos, amor e empatia.

“Hoje eu quero contar para todos que renasci. No grupo aprendi a me ver, me olhar e me amar. A vida não tinha mais sentido, e hoje tenho planos e sonhos”, pontua Cecília.

*Todos os sobrenomes das depoentes foram preservados para guardar anonimato.

--

--

Carolina Pulice
Lado M
Writer for

Jornalista que adora discutir sobre tudo com todo mundo, e de escrever sobre todas essas coisas que se tem pra se discutir