And Just Like That… Um novo capítulo de Sex and the City e o direito de ser uma metamorfose ambulante

Graci Paciência
Lado M

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Como trazer relevância a personagens apresentados ao público há mais de vinte anos? Em 1998, a série Sex and the City, baseada no livro homônimo de Candace Bushnell, apresentou ao público um grupo de mulheres na casa dos 30 anos (uma delas, na dos 40), solteiras, bem-sucedidas em suas respectivas carreiras, vivendo em Nova-Iorque e com visões distintas do amor e do sexo. Através da coluna semanal de Carrie Bradshaw (Sarah Jessica Parker) em um jornal, diversas questões sobre relacionamentos foram levantadas, e a maneira com que a liberdade feminina era tratada na série fez com que Sex and the City ganhasse fãs fiéis ao redor do mundo e, ao mesmo tempo, colecionasse haters que se limitavam a criticar o programa pelas características que incomodavam aqueles acostumados ao modelo da TV da época. Afinal, tratava-se de uma série com mulheres no centro da história, que levava moda a sério e que trazia personagens com sede de algo além de casamento e filhos.

Mas a série era muito mais do que isso. Com mulheres incrivelmente bem-vestidas e uma protagonista apaixonada por sapatos, Sex and the City abordou temas relevantes, porém nem sempre discutidos na época, como relacionamentos inter-raciais, impotência sexual, bissexualidade, autoestima feminina, diferenças financeiras dentro de um relacionamento, maternidade e a cobrança emocional em ambientes corporativos. Por baixo daquela superfície que aparentava ser fútil e vazia, podíamos ver personagens distintos e situações que mereciam atenção. Ao lado da relações-públicas Samantha Jones (Kim Cattral), da gerente de galeria de arte Charlotte York (Kristin Davis) e da advogada Miranda Hobbes, Carrie passa por situações que trazem questionamentos sobre comportamento.

Entre 1998 e 2004, Sex and the City teve seis temporadas e recebeu diversos prêmios, além de audiência astronômica. Depois disso, os fãs ainda tiveram a chance de reencontrar os personagens em dois filmes, lançados em 2008 e 2010, respectivamente. Depois do baixo número de bilheteria do segundo filme e do desentendimento entre Sarah Jessica Parker e Kim Cattral se tornar público, parecia que Sex and the City era um assunto desgastado.

Mas não é bem assim.

Onze anos após o fiasco do segundo longa-metragem, Carrie Bradshaw está de volta em dez episódios disponíveis no streaming HBO Max. Aos 55 anos, ela passou por transformações, mas não perdeu a sua essência e And Just Like That… Um novo capítulo de Sex and the City mostra o seu amadurecimento em diversos campos. Uma continuação depois de tanto tempo parecia arriscada e a apreensão entre os fãs da série tinha fundamento, pois, mesmo com tantas qualidades, o programa dos anos 90 tinha suas falhas, como alguns discursos que, revisitados em 2022, são claramente gordofóbicos, há pouquíssimos personagens não-brancos e os personagens gays da série são retratados de maneira estereotipada. Sendo assim, este era o momento ideal para mostrar que as pessoas evoluem, aprendem e repensam suas opiniões e suas ações.

Como é a vida das quatro amigas em 2021?

Carrie leva uma vida confortável ao lado de John, aka Mr. Big (Chris Noth). Ela não tem mais uma coluna no jornal, mas participa de um podcast de sucesso e é uma escritora famosa. O antigo apartamento ainda é mantido e serve de refúgio em eventuais momentos de necessidade de espaço, mas ela vive em um luxuoso apartamento ao lado de Big. A pandemia de COVID19 é rapidamente mencionada em um diálogo entre o casal e rapidamente esquecida.

Charlotte tem tudo o que sempre sonhou. Uma família de comercial de margarina, casamento estável e tempo e dinheiro o suficiente para que ela se dedique integralmente ao que gosta: reuniões de pais, atividades extracurriculares e suas amigas. Com as duas filhas adolescentes, ela percebe que filhos não são, necessariamente, a cópia dos pais e que suas meninas possuem, cada uma ao seu modo, identidade própria. Enquanto Rose (Alexa Swinton) não tem um terço da feminilidade da mãe, não se identifica com o judaísmo, religião para a qual Charlotte se converteu para casar com Harry (Evan Handler) e se encontra na não-binariedade, Lily (Cathy Ang) é totalmente diferente da irmã e começa a demonstrar vontade de ter sua beleza enxergada, além de ter pequenos surtos quando se depara com a imprevisibilidade do corpo feminino.

Miranda agora é mãe de um adolescente sexualmente ativo e empurra o casamento com Steve (David Eigenberg) com a barriga. Assumiu os fios brancos, tomou decisões importantes no trabalho e voltou a estudar, o que a trouxe uma empolgação que não sentia há anos. Ela se depara com Nya (Karen Pittman, da série The Morning Show) e falha miseravelmente ao tentar se mostrar parte da militância negra, mas consegue desenvolver uma boa amizade com a professora, que também tem seus anseios e passa por um momento conturbado na vida pessoal.

As três personagens, Carrie, Charlotte e Miranda, se encontram em novas amizades, com pessoas de fora do meio em que as três estão sempre inseridas juntas. Isso fluiu muito bem, deixou aquele ar de amizade imposta em que ninguém mais poderia fazer parte do universo das personagens originais.

Ao mesmo tempo, uma integrante essencial de Sex and the City ficou de fora. A icônica e inigualável Samantha Jones não faz parte de And Just Like That, por conta dos atritos entre Sarah Jessica Parker e Kim Cattral. Logo no primeiro episódio, quando perguntam por ela, ficamos sabendo que a relações-públicas agora mora em Londres e que se afastou depois que Carrie não concordou com alguns pontos de como ela administrava a carreira da escritora. Isso soou desleal com a personagem, que sempre se mostrou uma ótima profissional e amiga fiel. Ainda assim, Samantha aparece através de troca de mensagens por texto e demonstrações de consideração.

A nova amiga de Carrie é a corretora de imóveis Seema (Sarita Choudhury, da série Homeland), uma mulher incrível e bem-sucedida que nunca desistiu de viver um grande amor e que mente para a família a respeito porque é mais fácil do que tentar justificar o fato de ser solteira. É ela quem toma coragem e diz à Carrie que as palavras da jornalista também podem machucar, mesmo que não seja a intenção, e escancara o julgamento implícito nas atitudes da nova amiga.

Carrie (Sarah Jessica Parker) e Seema (Sarita Choudhury)

Charlotte também tem seu universo questionado ao se aproximar de Lisa (Nicole Ari Parker, da série Empire) e sua linda e rica família. Lisa é uma das mães que se fazem presente no colégio onde as filhas de Charlotte estudam e tem grande relevância no meio social inserida. Ao convidá-la para um jantar em sua casa, Charlotte tem uma grande revelação: ela e Harry não têm outros amigos negros. Isso causa impacto na maneira como ela se vê e na maneira com que será vista por outros. É embaraçoso vê-la “estudando” todo o contexto e se preocupando com a imagem que vai passar, mas ela e Lisa se dão bem e superam essa muralha.

As velhas amizades também permanecem. Anthony (Mario Cantone) e Stanford (Willie Garson) continuam casados, apesar do relacionamento bipolar e da dificuldade de chegarem a um consenso. Anthony mantém as atitudes que o fazem insuportável, mas um amigo presente, e mudou de profissão. Stanford, infelizmente, tem uma participação menor, por conta da morte do ator, em setembro de 2021.

Sexo e a cidade pelo direito de mudar

Apesar de abordar diversos temas, o centro de Sex and the City (a série e a coluna de Carrie) sempre foi a vida sentimental da jornalista. Seus encontros e desencontros, além de seus questionamentos, foram o norte da série e dos dois filmes. Como isso funcionaria em 2021? Bom, a personagem teria que se reinventar. Não só isso, mas também amadurecer e encarar uma nova realidade.

Mr. Big (Chris Noth) sempre foi parte importante de Sex and the City. Ele estava lá desde a primeira temporada e a maior parte da vida amorosa de Carrie girou ao redor dele. Entre idas e vindas, ele se casou com uma mulher mais nova, ficou deprimido diante de outra que o tratava com frieza, mudou-se para Paris, depois para a Califórnia e, enquanto isso, Carrie levava a sua vida em Nova-Iorque. Conheceu outros homens, mas seu coração sempre foi dele, Mr. Big, com quem ela casa no primeiro filme. Os fãs conseguiriam, então, imaginar Carrie sem ele? Embora parte do público tenha torcido para que ela ficasse com Aidan (John Corbett) é difícil pensar em Sex and the City sem Mr. Big.

Mas essa realidade que não cogitávamos bate à nossa porta logo no primeiro episódio, quando John sofre um ataque cardíaco e não resiste. E agora?

Agora é necessário viver o luto e seguir em frente e é isso o que Carrie faz. And Just Like That… não tem o clima cômico de Sex and the City, apesar da comédia aparecer em alguns momentos. A jornada, neste momento, é outra, é colocar a mão no ombro de Carrie e ajudá-la a passar pelo que, provavelmente, é o momento mais difícil de sua vida. É respeitar o luto e fazê-la entender que sua vida segue em frente. A gente percebe que, novamente, ela está sozinha em Nova-Iorque, mas décadas se passaram. Como seria paquerar em 2021? Como seria abrir seu coração após uma perda como esta?

Um dos acertos da série é permitir que a personagem siga o seu curso e não atropele nenhuma das fases do luto. Ela se permite ficar triste pelo que aconteceu, repensar a sua vida, seus objetivos e como será a vida após Big. Ao seu lado, estão Miranda e Charlotte, passando também por mudanças, principalmente a advogada.

Ela, que sempre foi realista e manteve os pés no chão, se entrega a uma paixão que não estava nos planos e se mostra o oposto do que foi em seis anos de Sex and the City: romântica, impulsiva e insegura. E por que isso? Porque pessoas mudam e, em um diálogo com Carrie, Miranda clama por essa permissão para mudar de opinião, para dizer que o que a fazia feliz ontem pode não ter o mesmo efeito hoje e que ela não é obrigada a manter o mesmo posicionamento de décadas atrás. Fica com Miranda a dura tarefa de mostrar melhor o efeito do tempo na personalidade de cada um. Podemos permanecer com a mesma essência, mas estamos em transformação constantemente. A personagem que sempre foi durona, que não permitia doses de romance em sua vida e queria ter o controle de tudo, reconhece que hoje é outra pessoa. Cynthia Nixon dirige um dos episódios em que Miranda passa a expor as mudanças pelas quais está passando e isso trouxe toda a sensibilidade que a situação exigia.

Entre as gratas surpresas de And Just Like That… está a estonteante Che (Sara Ramirez, da série Grey’s Anatomy), que comanda o podcast do qual Carrie participa. Artista queer, não-binária e autêntica, é uma das responsáveis por mostrar que a série está, sim, nos anos 2020 e que trilhou o caminho do amadurecimento ao lado do público. Além disso, seu crescimento deixa em evidência que, mesmo que Carrie (ao lado de suas amigas) seja o centro do universo criado por Candace Bushnell, elas podem dividir a pesada carga de espelhar a diversidade presente em Nova-Iorque. O mundo não gira mais ao redor delas, mas com elas.

Che (Sara Ramirez) e Carrie (Sarah Jessica Parker)

Tudo isso faz de And Just Like That… um exemplo do que pode ser feito de bom ao trazer personagens de volta depois de tanto tempo. Ao respeitar a jornada de cada um em tela e também o espectador, a produção acertou modernizando a sua linguagem conforme a trajetória de todos os envolvidos. As histórias se desenvolvem bem e, antes que a gente perceba, o clima cômico que estava na série nos anos 90 não faz falta porque ele foi substituído por algo que hoje funciona muito melhor e, mais do que isso, dá ao público a chance de perceber que ele também passou por transformações desde a última aparição das personagens.

Que venham outras temporadas feitas com tanta competência quanto esta, pois ficaremos muito felizes.

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Graci Paciência
Lado M
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Gosto terror e rock. Criadora e apresentadora do programa Soul do Rock, na Antena Zero. BlueSky: @gratona https://medium.com/@cronicasdagraci