Anita Hill em 2020 (esquerda) e prestando depoimento ao Senado do EUA em 1991 (direita).

Anita Hill: ela decidiu não se calar perante os Estados Unidos e o mundo

“Testemunhar me ajudou a entender que o comportamento e as ações de uma pessoa fazem a diferença. Essas ações são importantes para outras pessoas além de mim.”

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Antes de mais nada, Anita Hill não se resume apenas aos eventos de 1991. Com toda certeza, esse foi um momento crucial que a tornou mundialmente conhecida e demarcou um “antes” e um “depois” em sua vida (e na de toda a sociedade). Porém, não é meu desejo sintetizar a história de tamanha mulher em um único acontecimento. Olhar para a jornada de Anita é dar-se conta de que seu grande ato de coragem em 1991 foi a continuidade de uma mulher que já vinha corajosamente lutando por seus espaços e abrindo caminhos para as demais.

Anita Faye Hill (1956) é a mais nova de 13 irmãos. Ela cresceu em uma fazenda em Oklahoma (centro-oeste dos EUA) e graduou-se em psicologia pela Oklahoma State University (1977) e em direito pela Yale Law School (1980). Em 1981, Anita trabalhou no Escritório de Direitos Civis do Departamento de Educação dos EUA, onde atuou como consultora jurídica de Clarence Thomas, que era secretário assistente. No ano seguinte, ela foi trabalhar com ele na Comissão de Oportunidades Iguais de Emprego (EEOC). Por causa do ambiente de trabalho intolerável, Anita saiu em 1983 para lecionar na Oral Roberts University. Em 1989, ela se tornou a primeira professora afro-americana titular da faculdade de direito da Universidade de Oklahoma (OU).

Anita tornou-se especialista em Legislação e Política Antidiscriminação (Gênero e Raça) e seu último livro lançado foi Reimagining Equality: stories of Gender, Race and Finding Home (2011). Atualmente, ela é professora universitária de Estudos de Política Social, Direito e Mulher, Gênero e Sexualidade na na Brandeis University. A lista de prêmios e títulos de honras que recebeu ao longo de sua carreira consta na página da universidade. Suas contribuições profissionais e cívicas marcaram mais do que apenas uma geração. Ela é o símbolo estadunidense da luta contra o assédio sexual.

Anita Hill testemunha sobre a acusação de assédio sexual contra Clarence Thomas (Paul Hosefros, 1991, The New York Times).

“Contar ao mundo é a experiência mais difícil da minha vida”

Durante o tempo em que trabalhou com o juiz Clarence Thomas, ele a pressionou constantemente para que saíssem juntos, além de falar explicitamente sobre pornografia, o tamanho de seu pênis e outros tipos de assédio sexual. Anita recusou as investidas de seu superior, mas não o reportou especialmente por medo de que sua própria carreira fosse prejudicada permanentemente ao tentar denunciar o juiz.

Em 1991, George Bush pai nomeou Thomas como novo membro vitalício da Corte Suprema dos EUA. A nomeação de Thomas foi uma estratégia política do republicano, que queria indicar um nome conservador que fosse facilmente aprovado. Sendo Thomas conservador e um jurista negro de opiniões ainda pouco conhecidas, Bush concluiu que a oposição democrata não barraria a permanência de um negro na Suprema Corte, já que o até então primeiro e único membro negro estava saindo para se aposentar.

Contudo, durante as audiências para a confirmação do seu nome, Anita Hill apresentou-se à Comissão de Justiça do Senado dos Estados Unidos para reportar o assédio sexual cometido pelo jurista. Anita Hill era uma mulher negra denunciando seu superior por assédio sexual no trabalho perante a comissão da mais alta instância judicial do país, toda composta por homens brancos, no ano de 1991. Se você não se arrepiou, então você não entendeu a magnitude.

“Teria sido mais confortável permanecer em silêncio. Não tomei a iniciativa de informar ninguém. Mas quando um representante deste comitê me pediu para relatar minha experiência, senti que deveria contar a verdade. Eu não poderia ficar calada.” (Anita, 1991)

Thomas negou todas as alegações. Durante o interrogatório ele disse que “do meu ponto de vista como negro americano, no que me diz respeito, é um linchamento de alta tecnologia. […] Acho que isso hoje é uma farsa. Acho que é nojento. Acho que essa audiência nunca deveria ocorrer na América.”.

(Esquerda) O indicado pela Suprema Corte Clarence Thomas, em 10 de setembro de 1991, durante as audiências de confirmação. (Direita) Anita Hill, no dia 12 de outubro de 1991, ante o comitê judicial do Senado dos Estados Unidos.

Ao final das sessões, o Senado aprovou a indicação de Clarence Thomas para a Suprema Corte dos EUA, por 52 votos contra 48, tornando-o o mais jovem juiz da história da Corte e o que chegou lá com o maior número de votos contra. Thomas permanece até hoje na Suprema Corte.

Tudo foi televisionado, monopolizando a atenção da mídia de todo o país por dias. Ambas as declarações de abertura de Hill e Thomas podem ser assistidas na íntegra no YouTube.

11 de outubro de 1991: Declaração de abertura de Anita Hill.

O caso pôs em foco o assédio sexual no trabalho como nunca antes no país, sendo um divisor de águas na percepção de como a sociedade enxerga o ambiente de trabalho e as igualdades de gênero e raça.

“Aquela sessão no Senado, realizada por um painel formado só por homens brancos, transformou-se no paradigma de interrogatório machista e de culpabilização da suposta vítima nos EUA.” (El País, 2019)

Em 1991, a frase “eles simplesmente não entendem” tornou-se uma maneira popular de descrever a reação dos senadores à violência sexual. As audiências também intensificaram os holofotes sobre a falta de mulheres no governo: 4 mulheres ganharam cadeiras no Senado no ano seguinte, apelidado de “ano da mulher”. Antes disso, haviam apenas 2 senadoras.

“Como mulheres e advogadas, nunca mais devemos nos intimidar. Devemos levantar nossas vozes contra molestamentos sexuais. Todas as mulheres que se incomodam com integridade e moralidade no ambiente de trabalho estamos em débito com Anita Hill.” (Hillary Clinton, 1992)

Mas olha só quem estava no meio…

O presidente do Comitê Judiciário do Senado durante as sessões de confirmação de Thomas era ninguém menos que Joe Biden, atual vencedor das eleições de 2020 para presidência dos Estados Unidos. Isso faz de Biden o homem que permitiu que acontecessem perguntas inconvenientes e insinuações corrosivas contra Hill durante as sessões.

Joe Biden como presidente do Comitê Judiciário do Senado durante as sessões de confirmação de Thomas.

Algumas bizarrices que Biden consentiu: um amigo do juiz pôde depor sem passar por investigação prévia, e chegou a ofender Anita dizendo que ela não sabia lidar com a rejeição. Por outro lado, Angela Wright (uma outra funcionária que também havia acusado o juiz de tratamento inapropriado) não foi chamada para declarar. Além disso, o conservador Orrin Hatch leu fragmentos de um exemplar de O Exorcista em voz alta para insinuar que Anita Hill havia se inspirado no livro para conta sua história.

Em abril de 2019, horas depois de Biden anunciar sua intenção de se tornar o próximo presidente dos EUA, o pré-candidato democrata telefonou para Anita Hill, dizendo que sentia muito pelo que havia acontecido (28 anos depois). Em algumas ocasiões públicas, ele já havia mencionado o fato de lamentar a situação. “Eu acreditei em Anita Hill. Votei contra Clarence Thomas”, disse Biden em entrevistas.

“Meu único pesar é que não fui capaz de diminuir os ataques a ela por alguns dos meus amigos republicanos. Quer dizer, eles realmente foram atrás dela. Por mais que eu tentasse intervir, não tinha o poder de martelar eles fora de ordem. Eu tentei ser como um juiz e só permitir uma pergunta que fosse relevante de ser feita.” (Biden)

Hill não se contentou com o telefonema e afirmou ao New York Times: “Não posso ficar satisfeita ao ouvi-lo dizer simplesmente: ‘Sinto pelo que aconteceu com você’. Estarei satisfeita quando souber que há uma mudança real, uma verdadeira responsabilização e um verdadeiro propósito.” Em maio de 2019, Hill escreveu um artigo de opinião para o mesmo jornal, dizendo:

“Se o Comitê Judiciário do Senado, liderado então pelo Sr. Biden, tivesse feito seu trabalho e realizado uma audiência que mostrasse que seus membros entendiam a gravidade do assédio sexual e outras formas de violência sexual, a mudança cultural que vimos em 2017 após #MeToo poderia ter começado em 1991 com o apoio do governo.”

Algumas semanas depois, Biden disse à ABC News que aceita a responsabilidade pela forma como Hill foi tratada durante as audiências de confirmação. “Ela não teve uma audiência justa. Não foi bem tratada. Essa é minha responsabilidade”, disse Biden. No fim, Anita Hill deu entrevistas em apoio à candidatura de Joe Biden. Com Trump na oposição, esse era o caminho mais sensato a ser fazer.

Anita Hill explica seu apoio a Joe Biden: “Eu quero seguir em frente” (The View, out. 2020)

Eventos posteriores: ficção e um grande dejavú

O caso ganhou um filme em 2016: Confirmação. A atriz Kerry Washington interpretou Anita Hill no longa dirigido por Rick Famuyiwa. Os produtores afirmam que o filme não toma partido de nenhum dos dois lados, apesar dos republicanos terem considerado o filme tendencioso em relação a Anita Hill. Anita não estava envolvida na produção, mas pôde ler um dos primeiros roteiros, além de ter sido entrevistada pela atriz durante a preparação para o papel. “Não estou procurando um filme para tomar partido. Não podemos saber pelo filme [o que realmente aconteceu] porque o processo foi configurado para você não saber”, afirmou Anita.

Trailer de Confirmação, 2016.

Em 2018, o caso de Hill veio à tona novamente quando a professora universitária Christine Blasey Ford acusou o juiz Brett Kavanaugh (indicado de Trump para vaga na Suprema Corte) de agredi-la sexualmente em 1982. Ela depôs perante o Senado: “Eu achei que ele fosse me estuprar. Tentei gritar pedindo ajuda e Brett colocou sua mão sobre a minha boca para evitar que eu gritasse.” Na época, ele tinha 17 anos e ela tinha 15. A exemplo de Thomas, Kavanaugh negou veementemente essa e outras duas acusações de abuso sexual: “Isso [as acusações] é ridículo, além da imaginação”, afirmou.

Pin de Anita Hill e Christine Blasey Ford #BelieveWomen.

Durante o período, Anita Hill escreveu um artigo de opinião no New York Times, dizendo que “O Comitê Judiciário do Senado tem a chance de se sair melhor pelo país do que há quase três décadas”. Infelizmente, o Senado confirmou a indicação de Kavanaugh por votação de 50–48 em 6 de outubro de 2018. “Revoltante” não é nem o mínimo a ser dito...

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