Annie Malone: a mulher que revolucionou os cuidados para cabelos crespos

Helena Vitorino
Lado M

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Em 1888, nos Estados Unidos, cabelo crespo era sinônimo de “cabelo escravo”. Não haviam cuidados específicos, nem tipificação ou produtos para o cabelo da população negra. A revolução no tratamento do crespo ganhou nome e corpo na pessoa de Annie Malone, uma jovem fascinada por química e texturas e filha de escravos fugidos. Annie foi a primeira mulher nos Estados Unidos a pensar e desenvolver produtos e soluções específicas para cabelos crespos, e a partir disso criou a Poro, empresa-escola de Tratamentos Capilares Especiais para mulheres afro-americanas. Começou vendendo de porta em porta, e se tornou a primeira milionária negra dos Estados Unidos.

Vivendo em situação precária, fossem escravizados ou recém-libertos, a falta de acesso às condições de higiene básica era uma condicionante para que doenças dermatológicas e do couro cabeludo fossem mais frequentes na população negra. À época, ainda era costume social que o povo negro se banhasse com menor frequência, herança da escravidão. A autoestima e o cuidado com a saúde eram escassos. Quando lavado, o cabelo crespo era limpo apenas com o mesmo sabão químico usado na lavagem de roupas e utensílios, o que desgastava o couro cabeludo, causando caspa, calvície e alopecia. Para as mulheres, a situação era ainda mais desagradável: para “soltar” os fios, usava-se desde banha de ganso ou de porco até manteiga, que eram distribuídos com pentes de desenredar pelo de ovelha. Nem o sabão, nem as banhas e os pentes eram próprios para o cabelo crespo. E nenhum deles passava pela cabeça de uma mulher negra sem deixar uma ferida ou uma infecção.

Annie Malone não fugia à regra das mulheres negras de sua época na moda de “alisar”. O cabelo crespo não era ainda sinônimo de resistência, mas uma associação brutal ao período de escravidão. Rechaçar a raiz crespa era afastar um passado escravocrata, ainda tão recente. O questionamento de Annie era de como soltar os fios do cabelo sem prejudicá-los, sem deixar cheiro, sem provocar feridas, e acima de tudo, como fazê-lo crescer. A primeira solução que criou foi batizada de “O Maravilhoso Potencializador Capilar” (The Great Wonderful Hair Grower). Livre de odores e sem causar dano à pele do couro cabeludo, o Potencializador de Annie foi a famosa “receitinha” que deu certo: em 1902 começou a vendê-lo de porta em porta, ensinando cuidadosamente às freguesas o método de aplicação do novo e revolucionário produto. Era apenas um óleo e o “hot-comb”, o avô do famoso “pente-quente”.

Surgiu então a Poro, empresa que recebeu como nome a palavra de origem africana que representa “Crescimento Físico e Espiritual”. Durante as vendas, Annie e suas assistentes enfatizavam que o cuidado com a aparência era a primeira forma de uma mulher negra se auto respeitar. Assim, em 1917, sua marca já era tão consolidada e bem aceita no mercado que possibilitou a criação da Poro College, o primeiro instituto educacional para pesquisa e ensino de cosmetologia negra. A instituição formou mais de 75.000 pessoas, incluindo o cantor Chuck Berry e suas duas irmãs, as quais acompanhavam o empoderamento do povo negro nas barbearias e salões de beleza e desejavam uma vida melhor.

Annie também se tornou uma filantropa. Seus gastos em caridade se davam especialmente às comunidades negras, às iniciativas de empreendimento negro e aos orfanatos nos bairros
periféricos de St. Louis. Sua doação à Howard University é considerada a maior na história já recebida por uma afrodescendente. Tamanha foi sua dedicação à filantropia no auge do crescimento da Poro, que a administração do negócio foi sendo cada vez mais delegado a parceiros, em especial ao esposo, Aaron Malone. Em certo momento, Aaron passou a se proclamar o dono da empresa e suas discussões sobre o futuro da Poro culminaram no divórcio. Aaron exigia metade da companhia e perdeu a disputa, porém o desgaste emocional, psicológico e financeiro de Annie foi tão grande, seguido pela Grande Depressão de 1930, que a Poro foi perdida para o Governo dos Estados Unidos. Em 1957 faleceu Annie Malone, vítima de um acidente vascular cerebral, em Chicago.

Se há uma infinidade de produtos pensados para cabelos crespos nas lojas de cosméticos e enxergamos no cabelo crespo uma das mais poderosas armas de resistência, poder e valorização da população negra, nos curvamos à Annie Malone com reverência à incansável luta por respeito e autoestima. Numa época em que não existiam Beyoncés, Angelas Davis nem Michelles Obama para discursar abertamente sobre a beleza da mulher negra, Annie Malone encarnou a dor da escravidão e a transformou em empreendimento, sucesso e solidariedade.

Originally published at www.siteladom.com.br on May 10, 2016.

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