Anorexia nervosa: a relação abusiva com a qual terei que lidar pra sempre

Nathalia Marques
Lado M
4 min readFeb 14, 2017

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Aos 10 anos, brincando com uma amiga, me vi de frente para um espelho. Olhei para ele, levantei minha blusa e disse: “Nossa, como minha barriga está grande”. Ela respondeu enfática: “Você está louca? Não tem nada aí. Sua barriga é reta”. Fiquei tão confusa com a resposta dela que aquele momento me marcou. Mas, só alguns anos depois, especificamente aos 13, descobri que tinha uma distorção visual do meu corpo, uma característica da anorexia nervosa.

“Eu não sei quando foi a primeira vez que me senti feia

O dia que escolhi não comer

O que eu sei é que mudei a minha vida para sempre”.

(Tradução da música “Courage”, da banda Superchick)

A anorexia nervosa faz com que eu me veja de um jeito diferente do que as outras pessoas me veem. Não importa se de frente para um espelho, ou em uma foto: sempre vou achar que estou mais gorda do que sou realmente. Aos 13 anos, isso para mim era horrível. Eu queria ser magra a qualquer custo e fiz o que qualquer menina anoréxica faz: parar de comer.

Quando parei de comer conscientemente eu queria emagrecer, mas inconscientemente eu estava indo de encontro com a morte. Meus dias não eram mais como os de uma garota de 13 anos comum: passei a ter um diário de tudo o que comia, contava calorias, passei a usar laxantes, fazia abdominal no meio da madrugada.

Por conta de tudo isso, me afastei das minhas colegas e não conseguia mais ir ao colégio. Não tinha mais vontade de fazer nada, a não ser alcançar o peso ideal (que vivia abaixando quando eu chegava na meta estabelecida).

A “Ana”, como é conhecida por pessoas que possuem o transtorno, passou a ser minha única amiga. E, sinceramente, às vezes eu achava que só existia ela na minha mente, pois eu mesma já tinha desaparecido. Só existia ela dizendo o que eu deveria fazer para ficar cada vez mais magra.

Por conta de todas as vontades da anorexia nervosa, havia dias em que, ao escurecer, eu já quase não enxergava mais. Na época, meus dentes quebravam, meus cabelos caíam muito e, quando não resistia à tentação de comer algo, me punia.

Não sei quantas vezes dei entrada em hospitais desacordada ou sangrando. Talvez meus familiares saibam. Afinal, eles também participaram dessa corrida para a morte que eu travei e sofreram tanto quanto eu.

Quando minha mãe me disse que eu precisava ir ao médico e eu decidi que queria isso, entrei em uma batalha comigo mesmo. Por anos fiz tratamento no Programa de Atenção aos Transtornos Alimentares (Proata), em São Paulo, e quase todos os dias precisava ir lá.

Minha vida se resumia a ir ao médico. No Proata, encontrei garotas em estados bem piores que eu: em cadeiras de rodas, quase sem cabelos, internadas e sendo obrigadas a comer por sonda.

Por algum motivo, eu decidi que queria sair dessa. Fiz o tratamento correto e consegui me estabilizar. Tive alta no Proata, recuperei meu peso, entrei na faculdade.

Continuei fazendo tratamento com médicos especializados, como faço até hoje, só que o que eu não imaginava — nem a Nathalia que decidiu sair dessa — é que eu jamais me curaria. O fato, minhas amigas, é que, anos após muito tratamento contra a anorexia nervosa, entendi que a Ana era uma espécie de relacionamento abusivo do qual eu jamais poderia me libertar realmente.

A Ana jamais vai me deixar porque ela é esperta. Ela é um transtorno que se esconde no meu inconsciente, me engana e, quando vejo, trabalhei demais e esqueci de comer, fiquei nervosa com algo e não senti fome. Acordo às três da manhã e tenho uma pressão na cabeça, perco a visão por segundos e isso me lembra de que eu ESQUECI de comer e só tomei café por dias.

É assim: a anorexia nervosa vai me seguir, vir à tona quando não estiver bem, me fazer sentir culpada por ter comido demais. Só fui descobrir da malandragem da Ana há pouco tempo — e, para ser sincera, foi bem duro ouvir “anorexia nervosa não tem cura”, mas acho que, no fundo, eu já sabia. Afinal, eu vivo há anos tentando mantê-la longe de mim e ela sempre aparece.

“Eu sei eu devia ser melhor

Há dias em que estou bem

E por um momento

Por um momento eu sinto esperança

Mas há dias que não estou bem”.

(Tradução da música “Courage”, da banda Superchich)

Mas o fato de ela jamais desaparecer não me impede de continuar lutando contra ela. Eu luto e quero muito que todas as mulheres que possuem esse transtorno continuem lutando. Quando consegui estabelecer meu caso clínico, decidi tatuar uma frase no meu pulso e ela diz “Quando nutre me traz vida”. Essa tatuagem me faz lembrar que a Ana pode ser forte e me derrubar as vezes, mas minha vontade de viver sempre vai ser maior.

Originally published at www.siteladom.com.br on February 14, 2017.

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Nathalia Marques
Lado M
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Jornalista que viaja, literalmente e metaforicamente, e escreve sobre as coisas