As ciganas: vidas marcadas pela xenofobia e também pelo machismo

Maria Beatriz Melero
Lado M
6 min readJul 28, 2016

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Eles chegaram há mais de 400 anos ao território brasileiro. Os seus costumes, tradição, cultura e origem foram — e ainda são — misteriosos para nós. Conhecer a história e a realidade do povo cigano e, principalmente, das mulheres ciganas, ainda é um desafio para quem não pertence à comunidade.

Paula Soria, a primeira mulher cigana a obter um doutorado na América Latina, pela Universidade de Brasília, acredita que é preciso um empoderamento do grupo e que ele não seja mais visto com preconceitos, para que assim, as suas mulheres se sintam à vontade para explorar o mundo exterior à comunidade. Assim, as mudanças na realidade interna do grupo, como as questões de gênero, serão possíveis.

Quem são os Romani?

Antes de tudo é preciso entender que a denominação “cigano” é a forma ideal a se referir ao grupo. Você provavelmente já deve ter se deparado com as expressões romani ou romà em textos sobre ciganos.

Romani é o adjetivo usado para denominar o povo como um todo, sem diferenciar os diferentes grupos que existem. Já o termo romà se refere à pessoa que pertence ao grupo étnico.

Assim, a comunidade romani é composta pelos Rom (originários da Europa Central), os Sinti e os Calon — ambos originários de regiões da Itália, França e Península Ibérica. Não é à toa que o primeiro grupo a chegar ao Brasil foi o grupo Calon.

A documentação oficial registra que Angelina Torres foi a primeira mulher romí (cigana) a chegar ao território brasileiro, vinda de Portugal junto de seu marido, João, e os filhos. O casal de foi preso e enviado à colônia em 1574 após ter cometido um crime: ser romà (cigano). A perseguição aos romani é algo recorrente em sua história.

Sem amarras a terra, sem amarras aos tabus

A perseguição foi o que levou a comunidade a desenvolver o espírito de liberdade através do nomadismo, explica a romí (cigana) Paula. Assim, em resposta ao Lado M, a professora não diz “viver”, mas “estar” em Brasília; “estou aqui”.

Foi na capital federal que Paula defendeu a sua tese de doutorado “‘Juncos ao Vento’: Literatura e Identidade Romani (Cigana)”. E para concluí-lo, a romí precisou quebrar tabus dentro do grupo em que vivia e dentro da própria tradição romani.

O primeiro contato de Paula com os livros aconteceu no Brasil, quando era criança. Seu grupo foi acusado de tê-la sequestrado porque a cor de sua pele era mais clara do que a dos demais membros do acampamento. Paula foi, então, levada a uma instituição de acolhimento a crianças, onde teve o seu primeiro contato com a leitura e a escrita. “Aquilo foi traumático, mas por um lado eu percebi o que eu queria: eu queria ler. Eu fiquei fascinada pelos livros”, conta.

Uma vez devolvida a sua família, Paula pediu que continuasse a frequentar a escola. Aos 10 anos ela começou a estudar na Bolívia. Porém, com o passar dos anos, começou a enfrentar certas barreiras dentro de seu grupo para que continuasse com os seus estudos.

Os romà são um povo de cultura oral. Negar a escolarização de sua população foi uma forma de resistência à manutenção de sua própria cultura e identidade. “Eles nunca quiseram ser servos, vender sua força de trabalho para o outro, ter um patrão. Eles perceberam que a escolarização é uma forma de domínio cultural”.

Para a professora, a discussão sobre as minorias, a sua inclusão e diálogo nas escolas só aconteceram nos últimos anos. “Antes, [a escola servia para] formar o cidadão para aquela cultura majoritária. Então os romà percebem isso e dizem não à escolarização e se mantém como um povo oral”.

O incentivo para manter os seus estudos partiu de sua avó. Sendo mais velha, a avó de Paula passou a ter a sua opinião respeitada dentro do grupo em que a família vivia. “São considerados sábios. Mesmo a mulher, que começa a ter voz”.

O apoio aos estudos de Paula não durou muito tempo. Ao perceber que seu sonho seria cancelado, a estudante resolveu fugir e se desvincular do grupo. Por dois anos Paula sobreviveu sozinha e com o apoio de amigos feitos na escola. O retorno do contato entre Paula e seu grupo só foi retomado por intermédio de sua avó.

Vida romí

A influência da avó de Paula dentro do grupo só acontecia porque os seus membros a respeitavam por ela ser idosa. Nas comunidades romani, as mulheres não participam das decisões principais do grupo. Como a maioria das sociedades patriarcais, as deliberações são decididas pelos mais velhos e pelos homens. “A divisão de gêneros é bastante clara”, diz Paula.

A avó cuida dos netos, enquanto a mãe realiza atividades comerciais, como vender panos de pratos e a leitura de mãos — obrigatória em muitos grupos. “Por uma questão de tradição. É uma das coisas que a mulher tem que fazer para mostrar que é uma boa romà”, conta Paula.

O dinheiro que recebem por seu trabalho é entregue aos maridos para a subsistência da família. “Ela precisa mostra que pode ajudar. Ela é exigida nesse aspecto”, explica Paula. “O homem cuida de ganhos maiores: um carro muito bom, uma casa”.

Às mulheres cabem as obrigações de transmitir as tradições romani às crianças. As meninas são ensinadas desde pequenas sobre os ritos e os padrões de pureza. Elas sabem que o matrimônio lhes aguarda quando atingirem a maturidade — 80% dos grupos romani realizam casamentos de meninas com idades na faixa dos 15 e 16 anos, segundo Paula.

Elas também aprendem que a parte inferior da mulher é considerada impura, assim como a sua menstruação. “O sangue feminino tem essa questão de ser impuro. A mulher que tem um filho, o marido não ajuda porque ele não pode ter contato com esse sangue”.

Quando as mulheres deixam de menstruar, elas se tornam puras novamente e passam a ter voz dentro do grupo, como avó de Paula. “Ela não pode ter mais filhos. Então não há perigo de que o ventre não esteja guardado para a comunidade. Porque essa é uma das grandes exigências da virgindade: que essa mulher possa dar filhos para o grupo”.

Acolher para empoderar

Paula acredita que a realidade das mulheres romí só se transformará quando o mundo exterior deixar de ver com maus olhos os romà. “O que aconteceu comigo foi um caso muito isolado. o que se precisa não é dar apoio à mulher, mas ao grupo. Ele precisa se ver de outra forma e ter condições de ter o empoderamento como grupo. Sair dessa marginalidade, para que a mulher saia junto”.

Desde 2006 é celebrado o Dia do Cigano em 24 de maio no Brasil, em reconhecimento à contribuição da etnia no processo de formação da identidade cultural e histórica do país. Contudo, o preconceito ainda é latente.

Paula cita o caso de duas meninas que tentaram frequentar a escola. Apesar de não fazer parte da tradição, seus pais estavam interessados em prolongar os estudos das filhas. Porém, ao serem identificadas como romani, as crianças passaram a serem tratadas com indiferenças pelos colegas e pelos pais de outros alunos. “As meninas voltavam chorando todo o dia para casa porque eles queriam que elas usassem vestidos [típicos] e elas tachadas como ‘as ciganas’”, conta Paula. Com receio do sofrimento psicológico que as filhas poderiam ter, a família decidiu retirá-las da escola.

Para Paula é preciso que as mulheres se identifiquem com a realidade fora da comunidade romani e tenha conhecimento mínimo das ferramentas para sobreviver, como ler e escrever. “Ela está presa àquelas tradições grupais (…) É um medo muito grande sair [da comunidade]. (…) É terrível você se imaginar em um mundo ao qual você não sabe, sozinha, lidar com ele. Isso perpetua com que a mulher continue nessas condições, ainda que não queira (…)”.

O desejo de mudança existe, mas não é visível. “Muitas não estão satisfeitas. Mas esta insatisfação nem chega a ser exteriorizada. É um desejar que fica meio subjetivo nas mulheres”.

Paula Soria

Aos 43 anos, Paula crê que as mulheres romí podem aliar a tradição a um empoderamento pessoal para que possam crescer individualmente.

A ideia da professora é que a transformação aconteça dentro das comunidades romani. “Meu grande sonho é que as mulheres pudessem chegar a fazer o que fiz: estudar, seguir uma carreira sem ter que fazer essas rupturas tão dolorosas que eu fiz. Em nenhum momento eu quis romper por não querer casar virgem, por não querer ler mãos”.

A professora defende que as mulheres podem se empoderar e, ao mesmo tempo, permanecer romani e que viver dentro do seu grupo. “Eu amo a minha cultura. Eu uso as minhas roupas características, eu uso as minhas saias — não por uma questão de tabu, porque eu gosto. Eu saí porque eu queria estudar. Eu queria ser escritora. Como que eu ia escrever lá dentro? O meu sonho era conciliar, mas era inconciliável. É como se você tivesse que se exilar de seu país por um tempo”.

Originally published at www.siteladom.com.br on July 28, 2016.

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Maria Beatriz Melero
Lado M
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Jornalista aqui e no VIX | Cria da ECA/USP | Pitadas de feminismo, comportamento, bem-estar e direitos humanos