Livro As Filhas Sem Nome dá voz às mulheres silenciadas da China

Natalie Majolo
Lado M
5 min readAug 9, 2016

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Que o nosso ensino básico tem uma grande rombo sobre a história oriental, não é possível negar. O que sabemos sobre a China? Bem, aprendemos que lá inventaram a pólvora e que é uma civilização milenar. Após o caos do pseudo-socialismo, hoje é uma grande potência mundial, bem como também é o país mais populoso do mundo. Não sabemos muito sobre sua história, nem sobre seus costumes, sua cultura, sua religião. Não sabemos quem são as pessoas da China, não sabemos quem são as mulheres da China. Muito menos o que é a China.

Dessa forma, o livro As filhas sem nome apresenta a realidade de meninas chinesas que vieram do pobre interior chinês. Sem nomes porque nenhuma foi digna de um verdadeiro: todas eram mulheres. O pai, Li Zhongguo, por não ter “cumeeiras” (filhos homens), e sim, apenas “palitinhos” (filhas mulheres), nomeou as filhas de acordo com seu nascimento. Um, dois, três, quatro, cinco e seis. No interior da China, dizem que “palitinhos” não sustentam telhados. E caso você pense que isso aconteceu em épocas longínquas, não foi assim não: a história não se passa no século 19, mas sim nos anos 2000.

Assim, as irmãs, os “palitinhos”, querendo reconhecimento e independência, negam seu destino de mulheres fadadas a permanecer em casa, cuidar dos filhos, do marido e trabalhar no campo. Elas queriam poder ser elas mesmas e não o que lhes era imposto. Neste contexto, Três, Cinco e Seis são as protagonistas da história, que conta como as irmãs sobrevivem à cidade grande. De sua aldeia natal, vão em busca de uma vida melhor, longe da fome e da pobreza do interior. Então se dirigem a Nanjing, uma grande cidade cercada pelo rio Yangtzé.

Fora de sua aldeia, descobrem um mundo até então inimaginável. Em Nanjing, as pessoas não param de ir de um lado para o outro, usam aparelhos para se locomover e para se comunicar. Elas se olham no rosto. Elas conversam. Elas se tocam. Durante a leitura, você vai se surpreendendo com a simplicidade dessas mulheres. Frases como “Ela nunca tinha olhado um homem nos olhos” será recorrente. Afinal, no interior, uma mulher solteira não deve olhar um homem nos olhos. Elas ficam mal faladas. E ninguém quer ficar mal falada. Na aldeia, a coisa que se tem de mais sagrado é a própria dignidade — qualquer atitude suspeita a corrompe facilmente. Mas, na cidade, não é assim

Porém, a cidade é difícil e também muito maldosa. Pessoas do interior são tratadas como inferiores e muita coisa se mostrou diferente entre essas realidades. No caso das irmãs Li, até o dialeto. Elas não conseguiam entender bem o que as pessoas falavam, não só pelo modo como a língua era tratada, mas também pela sua bagagem cultural. Das três irmãs, somente Seis sabia ler bem e havia terminado a escola. Três frequentou o suficiente para saber ler. Cinco nunca tinha pisado em uma, já que seu pai nunca acreditou em seu potencial e sua mãe ficava à mercê da opinião do marido.

O que é interessante de se notar é que apenas o pai tinha nome: em todo o livro, a mãe não é nomeada. Ela é apenas uma sombra do marido, ao qual se uniu por um casamento forçado, combinado.

“Era como se ele (o pai) tivesse saído à rua e trazido de volta um instrumento para ter filhos, costurar, fazer o trabalho doméstico, criar porcos, alimentar os cachorros e tolerar injustiças e servidão. (…) Para uma mulher, um homem era a raiz de todos os problemas e uma fonte de amargura”

Na obra, fica claro que existe uma visão de amor romântico deturpada, com o sentimento de superioridade dos homens. Apesar de tudo, a mãe é a pessoa que as três irmãs mais sentem falta e a pessoa que mais amam.

Por meio de uma escrita simples e sem clímax significativo, a autora Xinran nos encaminha para uma viagem. Ela aborda uma China que não vemos, a China na qual as mulheres são ensinadas a abaixar a cabeça e ficarem quietas. A China onde elas não têm voz. A China, propriamente, dos homens, como podemos ver a seguir:

“Todos ao seu redor acreditavam que o mundo era um mundo de homens, e apenas um homem podia escolher a parceira para toda a vida. Os desejos de uma moça camponesa seriam motivo de riso, tratados como puro capricho. Poderiam até mesmo pensar que ela não andava bem da cabeça”.

As irmãs Li ainda têm muito a aprender sobre o mundo. Mas aprenderam a se empoderar, e a dar o próprio valor. Isso ninguém pode tirar.

Mas saiba: para ler uma obra histórica é preciso saber mais sobre história

É importante saber um pouco mais sobre a China para que a obra de Xinran faça mais sentido. Uma civilização milenar, que passou por diversas dinastias monárquicas (formadas por imperadores chineses) até 1911 , ano no qual a Revolução burguesa instaurou a República. Em 1949, Mao Tsé Tung e seus soldados percorreram todo o país e a Revolução Comunista implantou a República Popular da China. Desde então, planos econômicos e sociais foram feitos, como o “Grande Salto Adiante”, que falhou miseravelmente e resultou em milhares de mortes por fome. Em 1966, Mao implantou a Revolução Cultural, que consistia em modificar o status de ideologia imposta fazendo com que os ideais do Partido entrassem no âmago do cidadão, em sua cultura. Opositores eram “neutralizados”, por exemplo. Assim, a obra mostra as dores e reflexos que a Revolução Cultural trouxe na vida das pessoas, e que permanecem até hoje.

Outro ponto que merece destaque é o fato de que a China da cidade é muito diferente da China do interior. Na década de 70, após a morte do aclamado e adorado líder Mao, o país abriu sua economia e criou as Zonas Econômicas Especiais (ZEEs) — verdadeiros centros capitalistas. Essas ZEEs estão presentes na costa marítima chinesa, onde existe intenso comércio e presença industrial, como a cidade de Nanjing. Da costa para lá, a realidade muda. A autora Xinran deixa isso bem claro quando afirma que, conforme os quilômetros são andados, os séculos voltam.

O livro As filhas sem nome, é da mesma autora de As boas mulheres da China. A versão em português está disponível pela Companhia das Letras.

Originally published at www.siteladom.com.br on August 9, 2016.

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