As Horas Vermelhas: para que servem as mulheres?

Mariana Miranda
Lado M
4 min readJun 18, 2019

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Imagine-se em um país onde o aborto, a fertilização in vitro e a adoção por pais solteiros são ilegais. Agora imagine uma mulher solteira de 42 anos que luta contra o tempo para realizar o sonho de ser mãe antes que a lei a proíba. Ou então uma garota de 15 anos com um futuro promissor, mas que acaba lidando com uma gravidez indesejada. Como elas vão tomar as rédeas das próprias vidas frente a um governo que lhes retira a autonomia de seus próprios corpos?

O livro As Horas Vermelhas, de Leni Zumas, nos apresenta uma distopia nos Estados Unidos que se assemelha à vida que muitas mulheres levam no Brasil.

As mulheres de As Horas Vermelhas

Quatro protagonistas são responsáveis por nos guiar pela trama de As Horas Vermelhas. Além de Roberta, a mulher de 42 anos que quer ser mãe, e Mattie, a adolescente que acaba engravidando, o livro também é contato por Gin, uma eremita que é bastante procurada por seus tratamentos naturais, e Susan, mãe de dois filhos que se vê presa em um casamento infeliz e questiona frequentemente sua relação com a maternidade.

Cada capítulo é narrado por uma delas e recebe os rótulos de a Esposa, a Biógrafa, a Filha e a Reparadora, uma forma provocativa que a autora encontrou para questionar as posições sociais em que cada uma está inserida.

As narradoras precisam vencer batalhas diárias impostas não só por um governo retrógrado, mas também por toda uma sociedade. Seus destinos acabam se encontrando e elas se ajudam mesmo sem se dar conta disso. É através de demonstrações de sororidade que elas encontram a força necessária para vencer as barreiras.

Estados Unidos: uma distopia distante?

“Quando o Congresso propôs a Emenda Vinte e Oito à Constituição dos Estados Unidos e ela foi enviada aos estados para votação, a biógrafa escreveu e-mails aos seus representantes. Marchou em protesto em Salem e Portland. Doou dinheiro ao Planned Parenthood. Mas não estava tão preocupada assim. Era só um teatrinho político, ela pensou, uma demonstração de poder dos conservadores que controlavam a Câmara e o Senado em conluio com um novo presidente defensor dos fetos”

Desde 1973, o aborto é um direito constitucional nos Estados Unidos. Porém, desde o começo de 2019, 8 estados aprovaram leis que vetam ou restringem o acesso a esse procedimento. No Alabama e Missouri, por exemplo, a ideia é que o aborto seja proibido em todas as situações, até em caso de estupro.

É importante lembrar que durante 2016, o atual presidente Donald Trump já tinha dado indícios de que indicaria juízes a favor da derrubada da lei de 1973. Então fica o questionamento: será que o livro está tão distante assim da realidade norte-americana?

Photo by Maria Oswalt on Unsplash

Brasil: uma realidade

“Ela estava tranquilamente ensinando História quando aconteceu. Acordou um dia com um presidente eleito em quem não tinha votado. Esse homem pensava que mulheres que sofriam abortos espontâneos deviam pagar funerais para o tecido fetal, e pensava que um técnico de laboratório que acidentalmente derrubasse um embrião durante a transferência in vitro devia responder por homicídio culposo”

Enquanto as mulheres residentes nos Estados Unidos vão para as ruas lutar pela permanência da legalização do aborto, as brasileiras enfrentam uma realidade bem parecida com a apresentada em As Horas Vermelhas quando o assunto é aborto.

No país, só é permitido abortar em 3 situações: gravidez decorrente de estupro, feto anencéfalo e gravidez de risco para a mulher. Porém, nem todos lutam para mudar esse cenário. Segundo uma pesquisa feita pelo Datafolha no final de 2018, 4 em cada 10 brasileiros acredita que o aborto deve ser proibido em qualquer situação, inclusive em casos de estupro.

E é justamente por isso que a leitura de As Horas Vermelhas não é muito emocionante para quem mora no Brasil. É de apertar o coração ver toda a trajetória de Mattie escondendo a gravidez dos pais e tentando desesperadamente encontrar um local onde possa fazer o procedimento para a retirada do feto. Porém, ela poderia ser qualquer brasileira que se depara com uma gravidez indesejada. Estima-se que mais de 500 mil mulheres abortam clandestinamente no Brasil, boa parte delas escondidas e em situações degradantes.

O livro As Horas Vermelhas é chocante para uma leitora que vive em um país desenvolvido e com leis reprodutivas avançadas. Para nós, brasileiras, no máximo nos faz questionar o quanto o governo e a sociedade exercem domínio sobre nossos corpos. Afinal, muito do que é tratado como distopia, para nós nada tem de ficção.

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Mariana Miranda
Lado M
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Formada em Jornalismo pela ECA-USP e cofundadora do Lado M