As mulheres do samba que bradam a independência do Brasil em Lisboa

Tainah Ramos
Lado M
5 min readSep 8, 2022

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O Coletivo Gira, formado por mulheres imigrantes e LGBTQIA+, carrega as raízes do samba pela capital portuguesa, onde se apresentam em evento do Bicentenário da Independência

Com uma comunidade de 252 mil brasileiros, segundo os dados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) ‒ não são considerados cidadãos com dupla nacionalidade e sem residência regular ‒, o governo português tem se esforçado para estreitar os laços entre os países. Uma das ações é uma longa comemoração do Bicentenário da Independência do Brasil neste ano.

Nos jardins da Residência Oficial do Primeiro-Ministro, no próximo sábado (10), acontece um ode à riqueza da cultura brasileira, com música e dança que vão do forró ao funk ‒ e claro, passando pela roda de samba. Um dos representantes desse momento é o Coletivo Gira, um grupo de samba formado apenas por mulheres.

Além de imigrantes, elas são uma representação da luta contra o machismo, racismo, LGBTfobia e também contra as ideias da colonialidade.

Tudo começou, antes mesmo de começar, em uma noite de 2011, em Campinas, no interior de São Paulo. A jovem Neya Castro se apaixonou pela “dama do samba campineiro”. Com os olhos brilhando, disse ao seu então marido: “Se um dia eu cantar samba, eu quero ser como essa mulher”. Naquela época, Neya vivia na Europa e estava de férias. Já atuava como musicista ‒ não de samba ‒ do outro lado do Oceano, mas então viu Aureluce Santos (1948–2020).

Três anos mais tarde, Neya passou a cantar samba. Entre Portugal e Suíça, ela se considera uma “viajante” e leva sua voz pelo mundo. A jovem Neya de 2011 sequer poderia imaginar que uma década depois ela seria um dos pilares do Coletivo Gira, um grupo de samba formado por ela, Kali Peres, Cíntia “Tida” Pinheiro, Méli Huart e Emile Pereira, em Lisboa, a capital portuguesa. Além das cinco, há outras musicistas que não puderam estar presentes no dia da entrevista. São elas: Mariany Figueiredo, Vitória Faria, Juju Batera e Elena La Conte.

O Gira nasceu do movimento da união de mulheres muito antes das mulheres do coletivo se juntarem. “Eu já conhecia a Emile e a Neya antes do projeto, que veio por uma necessidade identificada por um evento que já existia no Brasil e em outras partes do mundo, que é o Encontro de Mulheres na Roda de Samba”, conta Kali.

A quarta edição do evento, que aconteceu em dezembro de 2021 em Lisboa, despertou, em Kali e Emile, a vontade de reunir as mulheres que conheciam com amor pelo samba. A afinidade entre elas se tornou muito além da música pela realidade que as atravessam: mulheres, imigrantes e pertencentes à comunidade LGBTQIA+.

Lugar seguro

Pela intersecção de questões sociais, elas viram a necessidade de criar um local seguro para que pudessem estar e se proteger, inclusive levar isso ao público que as acompanha. “Toda mulher imigrante neste país merece se sentir confortável, porque muita coisa é tolhida da gente”, afirma Tida, que precisou mudar de área e passou pela insegurança econômica da imigração, mas encontrou a felicidade no samba e no companheirismo das amigas.

Após não poder permanecer no Brasil, a francesa Méli Huart voltou ao seu país de origem no início da pandemia. Com a tristeza do sonho perdido, decidiu ir a Lisboa por ouvir falar sobre uma grande comunidade brasileira. “Em julho de 2021, foi quando eu vi meu primeiro samba, que foi o samba da Neya. Eu tocava pandeiro, mas nunca tinha tocado em uma roda”, conta.

Nos anos anteriores à existência do Gira, Neya relembra as dificuldades de ser a única musicista mulher das rodas, embora fosse quem comandava o evento: “Já fui desrespeitada por músicos homens de todas as formas que você possa imaginar”. Ela relata também que muitas mulheres viam a presença dela no samba como um lugar de liberdade.

Foi nesse contexto que Emile começou a frequentar, como espectadora, as rodas comandadas por Neya. “Eu tinha a sensação de que eu conseguia me doar mais quando ela estava comigo ali”. E, então, Emile levou à Neya o convite de participar do Gira. “Para mim foi tão intenso. Eu gosto muito do meu universo no samba, seja tocando com homens ou com mulheres, mas o Coletivo me representa de todas as formas. Sou uma mulher brasileira, preta e imigrante na Europa. Tenho que resistir todos os dias. Eu abracei esse projeto e fiquei feliz das meninas terem me abraçado também”, afirma Neya.

Gira é resistência

O nome do Coletivo nasceu de um trocadilho que já mostra para que veio. Em Portugal, “gira” significa “bonita”. Nas religiões afrobrasileiras ‒ candomblé e umbanda ‒, “gira” é um ritual em que os médiuns incorporam as entidades para os trabalhos espirituais. Há também a figura da Pombagira, considerada um exu feminino, ou seja, que faz ligação entre o mundo dos orixás e a Terra.

Desde sua concepção, o samba está ligado às culturas e religiões de matrizes africanas no Brasil, o que as meninas fazem questão de não ser apagado pelo colonialismo. A criação do nome fez com que recebessem críticas desde o início. “Falaram ‘vocês não devem misturar religião porque vocês estão em Portugal’, mas o samba não existe sem raiz religiosa”, afirma Tida. E Emile completa: “Queriam que adaptássemos para ficar mais suave aos portugueses. Já fomos colonizados uma vez, não vamos ser colonizados de novo”.

O projeto tem um papel de manter a tradição do samba viva e respeitar sua origem. Neya explica que o objetivo não ficarem famosas ou ganharem dinheiro, mas sim poder estar umas com as outras, ter uma rede de apoio e trazer uma ensinamentos também, inclusive por meio do repertório.

No fim, o Gira é uma grande mulher que entende seus defeitos, busca melhorar e acolhe outras. Uma mulher como a dama do samba admirada por Neya, Aureluce Santos, que faleceu, em 2020, sem nem saber o que é o Coletivo Gira, mas que deixou claro que cada mulher sambista é eterna por inspirar outras a atender ao pedido de Alcione e não deixar o samba morrer ‒ nem mesmo na terra dos colonizadores.

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Tainah Ramos
Lado M
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latino-americana, jornalista, defensora do meio ambiente e da decolonialidade.