Assédio na faculdade: a sala de aula como campo de batalha

Patrícia Beloni
Lado M

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“Adoro ver vocês se curvando”, disse o professor com aquele tom de malícia na voz. E a gente só ficou em choque naquele momento. Meio que demorou pra processar o que tinha acontecido. Eu saí da sala dele com vontade de chorar. Porque eu me senti completamente vulnerável, completamente exposta, abusada. A gente, que se acha tão esclarecida, feminista e pensa precisa lutar… Mas não é tão simples assim… Na hora, quando você vê… não dá. A gente não fez nada porque ele era nosso professor e podia complicar a nossa situação no curso se quisesse” — estudante de Jornalismo, 19 anos.

Depoimentos como esses estão aos montes pelos colégios, pelas faculdades, pelo meio acadêmico. “Aula não é lugar de usar decote nem saia curta. Se ela está se vestindo assim, está pedindo para que mexam com ela”, falam por aí. Presente em diversos lugares, infelizmente o assédio na faculdade faz parte sim do meio acadêmico. E mesmo neste meio de estudiosos e esclarecidos — ainda quando não se caracteriza como uma chantagem ou ameaça para tirar vantagem — cantadas, comentários de teor obsceno, abordagens grosseiras, toques indesejados e intimidades, surgem em grandes quantidades e são legitimadas ou por causa da roupa da mulher ou por serem consideradas“brincadeiras” ou elogios.

Essas atitudes que constrangem, humilham, amedrontam e inibem as estudantes são cada vez mais comuns e pior, submetem as alunas ao silenciamento sob o domínio do professor, que ali, exerce uma autoridade e é superior. O que está por trás do assédio na faculdade não é apenas uma vontade de fazer um elogio ou uma brincadeira. É uma tentativa de mostrar poder e intimidar uma outra pessoa.

De quem é o corpo?

“Não sai com os cabelos soltos, filha… Vai chamar atenção dos homens, é perigoso”; “Sério que você vai sair com esse shortinho pra ficar no bar, com aqueles caras? Sua louca”; “10 looks que vão fazer você conquistar o boy”; “Saiba qual o tipo de roupa que eles preferem”: essas sentenças podem aparentar não ter nada em comum, mas elas resumem duas situações graves da mulher na sociedade: quando ela é vista como se fosse um objeto e quando ela mesma se vê como um. A chamada objetificação e a auto objetificação deixam as mulheres vulneráveis a sofrer o assédio sexual.

Uma pesquisa de 2013 feita na rua pela Think Olga, uma ONG dedicada ao empoderamento feminino, para ver a opinião das mulheres (cerca de 7 mil) mostrou que 90% das mulheres já trocaram de roupa antes de sair de casa, pensando onde iam por causa do assédio, e 81% já deixou de fazer algo por esse motivo (desviar de locais).

Se privar de usar uma roupa ou de frequentar alguns locais por medo (ou por não ter saco) de ser assediada ou se vestir com o intuito de receber elogios ou cantadas na rua é uma condição que já afetou ou afeta grande parte do sexo feminino. A mulher não é um objeto sexual que precisa de aprovação e ela não deve ser enxergada como uma nem pelos outros, nem por ela mesma.

Não é culpa do decote!

“’Não fica perto do Tiago*, Marisa*’, era o que eu ouvia com frequência das minha veteranas. E era difícil descobrir o porquê. Um homem invasivo, que não respeita a privacidade das pessoas e que faz comentários sobre a vida pessoal, deixando qualquer um desconfortável. Carinhos na orelha, abraços e frases como ‘é para medir o quanto você está disposta’ me assustaram. Muitas meninas têm medo de agir, de se posicionar. Mas com o tempo, aprendi a ignorar este tipo de atitude”, estudante de turismo, 24 anos.

“Como combater uma sociedade que não reconhece problemas nesses tipos de comportamento? A sociedade vende a ideia de que a mulher não deveria se sentir ofendida, mas se sentir lisonjeada; que é só uma brincadeira. Esse comportamento coloca a mulher enquanto um objeto de desejo, que muitas vezes se torna um comportamento da própria mulher”, explica a psicóloga Arielle Scarpati.

E isso vem da educação enraizada da mulher também. “Eu tenho que estar bonita, tenho que ser nova, estar sempre arrumada, tenho que ser desejada”. Muitas mulheres foram criadas para acreditar que precisam da aprovação masculina para se sentirem mulheres de verdade, para se sentirem bonitas. Não é difícil ouvir por aí “se eu saio de casa e nenhum homem mexe comigo, eu volto pra casa e troco de roupa porque tem alguma coisa errada”.

E aquelas que não se encaixam nesse padrão, são julgadas, criticadas. “Ela não tem senso de humor”, “Ela só reclama”, “Ela não sabe brincar”, “É por isso que ela tá sozinha”, as pessoas falam. E então, o agressor sai imune, e a vítima, que deveria ter a sua queixa respeitada, na verdade é condenada pela reação que mostrou.

O ser humano não é um animal irracional. Ele tem controle sobre si mesmo. Então mesmo que exista um desejo que é físico, a forma como esse desejo é manifestado tem a ver com a cultura, com a educação, com o processo de socialização do indivíduo. Homens ao redor do mundo aprendem de maneiras diferentes como lidar com o seu desejo. Em países do Oriente Médio, em que a mulher usa burca, alguns homens ficam excitados apenas em ver olhos que estão maquiados com rímel, a única parte que eles têm acesso do corpo da mulher.

O que precisa ficar claro então é que o problema não é o decote, que parte da lógica do quanto o corpo é exposto.O problema não é o desejo físico, mas o que é feito com ele e o quanto as pessoas em volta legitimam essa ação. A cantada, por exemplo, é a expressão de uma opinião não requisitada sobre outro ser humano. O elogio sem a permissão é uma invasão.

Impactos

“Eu me fazia de besta e sempre inventava uma desculpa para me esquivar dos assédios dele. Até que ele tentou agarrar uma amiga e me ameaçou, dizendo que se eu não o beijasse, minha nota não seria a máxima, mesmo eu merecendo. Eu não sou dessas alunas que têm medo. Enfrentei ele, mas não levei pra frente porque tinha medo de me envolver num escândalo e me prejudicar na faculdade. Queria uma vaga na monitoria, não podia correr o risco”, estudante de enfermagem, 27 anos.

Inúmeros e indeterminados, os impactos deste e de outros tipos de abordagens podem ser físicos e/ou emocionais. Cada mulher que passa por essas experiências vai sofrer um tipo de efeito diferente. Ela pode nunca ter sido ou ser vítima de estupro, por exemplo, mas a vida dela pode ser comprometida em vários aspectos por esses assédios, explica a psicóloga.

Ser submetida a esse tipo de violência recorrente é associada a consequências de saúde como transtorno alimentar, psiquiátrico e/ou obsessivo, depressão, ansiedade, dores crônicas, entre outras. Sem contar que a mulher pode iniciar um processo de auto objetificação, em que ela se preocupa demais com a aparência e com que os homens vão pensar sobre seu físico.

Buraco sem fundo?

Não são todos doutrinadores que enxergam a relação de professor aluno passível de ser considerada assédio. E perante a justiça, a visão pessoal interfere na aplicação da lei. Os valores, regras, crenças dos seus representantes podem fazer com a questão não seja enxergada como um tipo de violência e que o problema seja encoberto.

O comportamento dessas estudantes que sofrem os assédios, mas não denunciam é compreensível e justificável. O medo de não receber credibilidade, de ser responsabilizada, ou prejudicada é fundamentado uma vez que a sociedade ainda possui esse tipo de pensamento que coloca a culpa na mulher, nas suas roupas.

E essa mudança requer educação e muita conscientização. Não dá para achar que trocar de roupa por medo de assédio é normal. E não dá para aceitar um comentário de conotação sexual que deixou alguém desconfortável como um elogio ou uma brincadeira. E não dá para achar que essa luta não é com você. “Enquanto uma mulher está sofrendo violência, todas as outras estão em risco” (Scarpati, A., 2015).

*Os nomes foram trocados para preservação dos envolvidos.

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Originally published at www.siteladom.com.br on October 2, 2015.

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Patrícia Beloni
Lado M
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Sempre em movimento, ela não gosta de rotina. A jornalista adora novidades e está sempre em busca de aprender mais. Amante dos esportes e da espiritualidade