Bela Vingança e as diversas faces da ira feminina
Um conto de vingança, embrulhado em papel de bala de goma
Este texto contém spoilers e pode ser gatilho para abuso sexual
De início, não é revelado muito sobre a trama e somos apresentados à uma mulher, sozinha e bêbada, em um bar. A cena é parte de uma situação já conhecida: um homem, munido das melhores intenções, se aproxima e a oferece ajuda, que posteriormente incluiria sexo não-consentido. Mas, como nada nesta história é que parece ser, o momento é interrompido pela surpresa lucidez — e ira — da personagem. É, neste momento, que o espectador é introduzido à Cassie (Carey Mulligan): uma mulher que busca vingança, na tentativa de corrigir eventos do passado.
A história vai entregando pequenas pistas que permitem remontar o quebra-cabeça da vida da protagonista. E é a partir destes encontros que o espectador aprende, ao longo da trama, sobre o passado promissor da personagem: uma aluna brilhante de medicina, que abandona o curso para cuidar da melhor amiga Nina, vítima de abuso sexual, por um colega de curso das duas. Eventualmente Nina morre e, à sua maneira de lidar com o trauma, Cassie parte em uma jornada de vingança pela a amiga.
O filme avança por duas linhas paralelas, que muitas vezes se entrelaçam: a primeira, segue a vida-dupla da personagem, visitando bares e clubes noturnos, a fim de evitar que novas vítimas sejam feitas pelos predadores que cruzam seu caminho. E a segunda — e grande responsável por sustentar a narrativa até o final — a de jornada pela descoberta dos traumas pregressos da vida de Cassie, e grandes motivadores de suas decisões.
Apesar da narrativa inevitavelmente fazer diversas referências ao passado, há uma escolha por fazê-los de maneira curiosa: todos a partir de diálogos de Cassie com outros personagens no tempo presente, sem a utilização de flashbacks. O artifício faz com que a os acontecimentos pareçam mais verossímeis e, de acordo com a diretora Emerald Fennell, permitiu um tratamento menos maniqueísta para as temáticas exploradas pela história:
Isso é uma coisa tão pegajosa e fascinante para mim. E eu acho muito mais interessante do que o preto e branco que, tantas vezes, vemos nesses tipos de filmes. Este é um filme sobre pessoas que conhecemos e pessoas que amamos, e como chegamos a um pacto com o fato de que, talvez, todos nós tenhamos sido cúmplices de algo que não é muito bom, e como consertamos isso.
A presença de uma mulher na direção, tem grande parte nesta escolha, especialmente quando colocada lado a lado com produções que tratam de assuntos semelhantes, como “Garota Exemplar” (2014) e “Kill Bill” (2003) — com destaque para a segunda. As semelhanças do filme de Quentin Tarantino, no entanto, se restringem ao plot e à protagonista feminina, já que, Fennell abraça elementos ligados à sensibilidade, tornando a história ainda mais crível, enquanto Tarantino os nega completamente, tornando suas personagens máquinas de violência, em roupas justas de látex.
A estética do filme é outro elemento crucial. Em movimento semelhante à produção de “Maria Antonieta” (2006), da diretora Sofia Coppola, a explosão de tons pasteis e a trilha sonora pop que predominam, são utilizados como recursos narrativos para contar uma história possível, de tantas, sobre feminilidade. As cores e a música funcionam, ao mesmo tempo, como uma aceitação de símbolos ligados à construção do feminino — muitas vezes vistos como sinônimos de fragilidade — e como uma armadilha: uma história que aborda temas sombrios, envolto em papel de bala. O comentário feito pelo crítico de cinema Roger Ebert, em 2006, sobre Maria Antonieta, poderia também ter sido escrito a respeito do trabalho de Fennell:
Este é o terceiro filme de Sofia Coppola centrado na solidão de ser mulher, enquanto rodeada por um mundo que sabe te usar, mas não te valoriza e te compreende.
As semelhanças entre as duas produções, no entanto, não param por aí: ambas foram indicadas ao Oscar. Enquanto Maria Antonieta venceu o prêmio, em 2007, por “Melhor figurino”, Bela Vingança está indicado às categorias de Melhor filme, Melhor atriz, Melhor roteiro original, Melhor montagem e Melhor diretor — a última especialmente relevante, já que é a primeira vez, em 93 edições da premiação, que duas diretoras concorrem na categoria. Apesar disso, até hoje, nenhuma diretora negra sequer recebeu qualquer nomeação.
Por fim, o destaque para a atuação de Carey Mulligan, como Cassie, a grande responsável por conduzir o espectador pelo tema. Para as viúvas da trágica Daisy Buchanan, de “O Grande Gatsby” (2013), ou da atrevida Kitty, de “Orgulho e Preconceito” (2005) — como eu — espere encontrar algo totalmente diferente: desde a voz, até a maneira de mover-se e as motivações, aqui depara-se com uma personagem desiludida, amarga e, principalmente, furiosa. Em entrevista ao Actors on Actors, da revista Variety, Mulligan contou sobre a construção de Cassie:
Eu acho que o ponto principal, desde o começo, apesar [do filme] parecer uma mistura entre uma comédia ácida, filme de vingança e um thriller, é que eu queria que ela [a personagem] se assemelhasse à uma pessoa de verdade. O primeiro take foi literalmente: “com o que a fúria feminina se parece? O que você realmente faria se tivesse na mesma posição?”
A produção é um pout-porri de gêneros muito bem vindo e que tem sucesso ao abraçar os traumas, a fragilidade, a ira e a força que envolvem o universo da história. Emerald Fennell não tem a pretensão de ser a voz de seu tempo, mas entrega uma possibilidade de narrativa coesa e que, definitivamente, não te esquiva de pensar. E que bom existirem mais mulheres contando este tipo de história, acertando ou errando — e sendo reconhecidas por isso — porque bem se sabe, mas os homens já fazem isso há tempos.