Belo Mundo, Onde Você Está é uma coletânea de ensaios disfarçada de narrativa

O romance mais recente de Sally Rooney traz a estranheza do mundo contemporâneo, mas peca na hora de criar uma história interessante

belle
Lado M
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3 min readJan 7, 2022

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Belo Mundo, Onde Você Está — sem interrogação — acompanha os personagens Alice, Felix, Eileen e Simon, na virada dos 20 para os 30 anos, em momentos de amadurecimento e estranheza.

O livro é contado em capítulos, que se alternam seguindo Alice — uma jovem escritora de Dublin, com recém notoriedade — Eileen, sua melhor amiga da faculdade e funcionária de uma revista literária, e as trocas de e-mails entre as duas, com divagações e pensamentos, sobre tudo: de Jesus ao teflon, da crise estética da vida moderna ao processo de escrita.

“Sei que concordamos que neste momento a civilização está em fase de decadência, e que a feiura sombria é a característica visual prevalecente da vida moderna. Carros são feios, prédios são feios, bens de consumo descartáveis produzidos em massa são de uma feiura indescritível. O ar que respiramos é tóxico, a água que tomamos é cheia de microplásticos e nossa comida é contaminada pelas substâncias cancerígenas do Teflon. Nossa qualidade de vida está em queda, e com ela a qualidade da experiência estética à nossa disposição”.

Como a própria Sally Rooney fala em sua participação ao podcast do The Cut, ela é uma autora que gosta de capturar as tensões entre as pessoas, algo que fica especialmente claro e bem feito em seus dois livros anteriores — Conversas Entre Amigos e Pessoas Normais — em que grande parte das histórias se desenvolvem no não dito.

Mas, em Belo Mundo, este, o grande trunfo da escrita de Sally, fica um pouco perdido. Dá-se destaque às conversas por e-mails, que naturalmente apoiam-se nas palavras, na verborragia e no dito para poderem existir, e as interações entre os personagens ficam extremamente pobres, sendo difícil, por diversas vezes, sequer importar-se com eles.

“Se eu consigo imaginar dois personagens interessantes e existe algum tipo de frison entre eles — seja ele romântico, uma amizade ou um conflito, é a partir daí que eu começo a escrever. Existe um fator narrativo sobre a dinâmica entre duas, ou três ou quatro pessoas, no sentido que é algo mutável ou a ser desenvolvido, de tal maneira que eu posso acompanhar o equilíbrio e o desequilíbrio daquilo.”

A escolha não é desinteressante, pelo contrário: é maravilhoso poder ver o mundo comentado a partir dos olhos da autora. Mas, como objeto narrativo, que precisa de um enredo para poder existir, a história não funciona tão bem.

A impressão que se tem é de que, Rooney tivesse originalmente imaginado o texto no formato de breves ensaios mas — assim como sua personagem Alice, que se depara com expectativas de muitos leitores, uma editora e um êxito repentino — a “voz da geração” decide ir por um caminho de narrativa, mais palatável para todos, e o resultado é uma história costurada, com relações mal construídas, mas reflexões precisas.

A autora possui um perfil no Spotify com playlist para cada um de seus personagens, com letras que expandem as histórias.

Apesar da dificuldade de interesse pelos personagens, o livro tem seus momentos bons. As descrições da costa da Irlanda, tanto no verão quanto no inverno, e da acinzentada Dublin, colocam o leitor exatamente dentro do mundo de Rooney — assim como seus antecessores. Outro ponto forte é a sensibilidade com que sua escrita capturar o zeitgeist — ou espírito do tempo — já que as reflexões sobre política, leitura, cristianismo, poluição e vida adulta , entre tantas, conseguem brilhantemente ocupar o espaço de poucas páginas, sem perderem a profundidade.

Como toda a literatura de Sally Rooney, Belo Mundo, Onde Você Está merece ser lido. Mas, com o cuidado atento de ser visto como um livro que mescla gêneros ou uma coleção de ensaios disfarçada — e não uma pura e simples narrativa. Quem espera um novo “Pessoas Normais”, pode sair frustrado, por isso recomenda-se o coração aberto, para escutar o que Sally tem a dizer — e ela tem muito a dizer.

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Lado M
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estou sentida e portuguesa, agora não sou mais, veja, sou mais severa e ríspida: agora sou profissional.