Bordados é mais uma HQ incrível de Marjane Satrapi, autora de Persépolis

Helena Vitorino
Lado M

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É logo depois do almoço, no momento que os homens se retiram para fumar e conversar sobre política, que as mulheres se unem para compartilhar os mais íntimos relatos e segredos pessoais. Enquanto lavam a louça e passam o chá (ou café), as histórias mais íntimas e divertidas vão se costurando num verdadeiro bordado. Fazem das lágrimas e risadas compartilhadas o fio que costura a dor e o amor de cada uma. Antes de ler Bordados, de Marjane Satrapi, eu era incapaz de imaginar que este cenário ocorresse em outro lugar do mundo que não fosse apenas na minha família. Mas não.

O momento clássico em que homens e mulheres se separam — eles para falar de coisas públicas e elas para falar de assuntos particulares — é mais universal do que se imagina. E é no Irã, terra onde a autonomia e submissão de mulheres coexiste com o machismo e a opressão, que o livro Bordados se desenrola. Numa tarde depois do almoço, na hora de apreciar o chá, as mulheres da família Satrapi se reúnem para falar de casamentos forçados, virgindade e religião, emancipação feminina, vaidade e sororidade.

O livro sobrepõe realidades comuns no Irã: mulheres que tiveram suas vidas e liberdades duramente podadas após a revolução islâmica iraniana (1979). Considerado liberal e até mesmo “ocidentalizado” até esta data, o país passou por uma revolução religiosamente articulada, onde a tomada do poder político por líderes islâmicos afetou diretamente a vida dos cidadãos, especialmente das mulheres. Direitos básicos e regulares, como a educação, o trabalho, o casamento, e até mesmo o livre trânsito pelas ruas, foram substituídos pelo fundamentalismo. A partir daquela data, nenhuma mulher poderia mais sair de casa sem estar devidamente coberta, e sem a presença de um homem. Em termos de direitos femininos, a revolução foi um retrocesso brutal, e é a partir dela que as conversas de Bordados se desenvolvem.

Conversas “proibidas”

A graça de Bordados está, justamente, na “ilegalidade” das conversas e dos assuntos abordados pelas mulheres. Elas mostram que, quando estão juntas e apartadas dos homens, podem e fazem tudo. Mesmo sendo proibidas de namorar ou de escolher seus parceiros, as relações clandestinas e apaixonadas se desenvolvem, e elas relatam umas para as outras as melhores formas de driblar ou conviver com os restrições de uma sociedade amplamente machista. A avó de Marjani, veterana do período pré-revolução e defensora da liberdade e do poder feminino, conta para as demais mulheres — com orgulho — como ajudou uma amiga a dissimular a perda da virgindade na noite de núpcias, e o fiasco que foi a atuação. As tias de Marjani também riem ao lembrarem-se da fuga de seus casamentos forçados com homens idosos quando eram apenas crianças, e do preconceito social que enfrentaram ao optar pelo divórcio.

A vaidade vaginal

Em determinado momento o tema da vaidade excessiva recai sobre as conversas quando as mulheres começam a falar das cirurgias plásticas. Algumas delas, incomodadas com seus narizes, seios e quadris detalham como as experiências cirúrgicas lhes serviram para melhorar a autoestima, segurar o casamento, e então o título do livro faz sentido: elas riem ao fantasiar com o famoso “Bordado”, apelido da Ninfoplastia, cirurgia de reconstrução dos lábios vaginais e apertamento da vagina. Numa sociedade em que a virgindade é o sinônimo da reputação para a mulher que ainda não casou, as cirurgias de correção da genital são um fenômeno comum e misterioso. Muitas fazem, mas pouco se fala a respeito. Como um segredo de domínio coletivo, a Ninfo e a Himenoplastia fazem parte de um contexto cultural sobreposto: a tradição ainda cobra a virgindade, mas a globalização e a banalização de contextos religiosos, muitas vezes, afrouxa os preceitos tradicionais.

Ah, Marjane… ❤

Bordados é um retrato íntimo do coletivo de mulheres do Irã. Cada uma das personagens apresentadas no HQ tem personalidades e momentos que representam os momentos do Irã. Bordados é tão pessoal quanto Persépolis, mas vai além ao mostrar que os dilemas de Marjane já eram compartilhados e vividos por suas gerações anteriores. E, assim como todo bom encontro de mulheres em família, Bordados é acolhedor. Sua linguagem totalmente feminina faz qualquer mulher que leia o HQ se sentir ali, no sofá aveludado daquela sala, contando causos e rindo das alegrias e infelicidades que se abatem exclusivamente sobre nós, mulheres.

Originally published at www.siteladom.com.br on October 26, 2017.

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