Carta à Rainha Louca e o diacrônico machismo brasileiro

Natália Sanches
Lado M
4 min readJul 11, 2019

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Carta à Rainha Louca, novo livro de Maria Valéria Rezende (Jabuti 2015 e 2016) surpreende por esclarecer algo que as mulheres tentam provar há anos em sociedades patriarcais: a loucura feminina é uma invenção social.

A carta em questão é de Isabel das Santas Virgens, que está confinada no convento do Recolhimento da Conceição em Olinda, no ano de 1789. Já neste fato, a leitora se pergunta o motivo da prisão — sem questionar se mulheres precisam cometer algum crime para serem presas. Não é também uma coincidência a destinatária ser Maria I, conhecida como “Rainha Louca”, pois o relato registra justamente a possível identificação das personagens pela denominação lunática que ambas recebem.

Através de muita pesquisa histórica e usando o vocabulário próprio do setecentos, mesclado a uma linguagem moderna, Maria Valéria Rezende recria com a história de duas mulheres em um período conturbado do passado brasileiro.

O livro Carta à Rainha Louca

Carta à Rainha Louca é dividido em 4 partes, começa em 1789, auge da Era do Ouro no país, ano também da Inconfidência Mineira e período de grande instabilidade na Colônia. A elite brasileira, cansada de pagar impostos à Coroa, se revolta para garantir uma suposta Independência. Revoltas que, diferente das europeias (precisamente da Revolução Francesa), não são de cunho popular e excluem completamente as mulheres. A partir deste contexto, nossa “narradora” tenta denunciar os Homens da Coroa e a estrutura patriarcal da época.

A escrita feminina

Raríssimo no século XVIII, a escrita feminina é o que tem de mais impressionante no livro. Foi preciso um domínio quase acadêmico da Língua Portuguesa para construir o relato. Ler as cartas é uma experiência filológica, sociológica e feminista.

Por se tratar de uma carta pessoal, as partes que Isabel “risca” no texto mostram a espontaneidade do pensamento, como se “pensasse melhor” e não valesse a pena registrar. É uma desorganização válida, pois até desabafos, quando registrados, passam pelo crivo da consciência.

A obra não é apenas um desabafo, a escrita toma controle a partir de 1791, quando a narradora, apesar de não desistir da denúncia, fica um pouco mais conformada com o confinamento e não mede tanto suas palavras, pois acredita que, independente do futuro, será difícil entregar sua carta em mãos.

Loucura?

O que também surpreende muito em Carta à Rainha Louca é a definição de loucura. Em uma sociedade normativa como a nossa, regida pela moral cristã na vida pública e privada, todo ser “desajustado” era punido e se este ser fosse feminino, a punição era, primeiramente, a fogueira. Iniciada no século XV, a caça às bruxas tinha como alvo executar mulheres que, supostamente, enfrentavam a religião Católica e estariam possuídas por forças superiores. Afinal, era preciso ser “muito louca” para questionar os dogmas da Igreja.

Histeria?

Porém, essa perseguição foi ressignificada ao longo do tempo. A palavra “histeria”, por exemplo, tem origem grega e significa “útero”, como se a mulher tivesse biologicamente propensão a ter ataques emocionais e descontrole de suas emoções.

No século XIX, o pai da psicanálise, Freud, tenta provar que os desequilíbrios emocionais são ocasionados por traumas sexuais, o que levariam as mulheres ao que chamamos hoje de “depressão”.

No entanto, no século XXI, esse transtorno atinge tanto mulheres como homens, comprovando assim que ser uma pessoa histérica independe do órgão reprodutor. Em Carta à Rainha Louca, Isabel tem plena noção disso e acusa os homens de a denominarem louca não pela sua condição feminina e sim, por ser uma mulher que pensa.

“Disso talvez se tenha feito a minha loucura, pois, segundo me dizem, nenhum espírito de mulher, salvo decerto as de linhagem como Vós, é capaz de suportar o peso do saber” (página 16 de Carta à Rainha Louca)

Carta à Rainha Louca é um dos grandes registros e uma das grandes provas que a sociedade brasileira, de origem europeia e com traços coloniais permanentes, não superou o machismo, e, em alguns casos, arrisco-me a dizer que ele está mais vivo do que nunca.

O que o livro tem de mais concreto é justamente o fato de que a carta escrita por uma mulher pobre, sem dotes e sem rumo é endereçada para outra mulher, real e dona da Coroa, ambas tidas como “loucas”. Se é preciso apenas duas mulheres para começar uma revolução feminista, é preciso garantir, também, que a carta seja entregue ao endereço certo: a população feminina.

Leia escritoras mulheres, leia Maria Valéria Rezende, pois segundo a autora: “A boa literatura é essa que me permite entender como outra pessoa, em outras condições, se sente e vive.” E as mulheres precisam ser ouvidas para reconhecerem suas vivências.

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Natália Sanches
Lado M
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é Natit. Professora especializada em Estudos Brasileiros, paulistana de nascença, mas catarinense de coração. 17 tatuagens e cabelo curtinho. Gosta de tulipas.