Cenas das celas: sobre a revista íntima em mulheres
“Camélia concordou, essa é a parte boa da notícia”, disse Angélica. “Mas acho que você não vai querer.”
“Como assim, não vou querer?”, retruquei.
“É que… para entrar na cadeia, você vai ter que passar por uma revista íntima. Entende o que isso quer dizer?”
“Sei sim”, respondi, usando uma entonação que deixava transparecer que eu não sabia, apenas imaginava.
“Flavia, na revista íntima você tem de tirar a calcinha, abrir as pernas… sabe? E isso não tem como negociar. Questão de segurança.”
Foi com a apresentação deste trecho que eu e Flavia Ribeiro de Castro, autora de Flores do Cárcere e diretora geral da ONG EducaAlma, iniciamos uma conversa. Ele falava especificamente sobre como foi o dia em que Flavia fora aceita para trabalhar na Cadeia Pública Feminina de Santos, no litoral paulista. Formada em Administração pela USP, a escritora começou ensinando informática às presas, e, ao fim, acabou passando o ano de 2005 na aplicação do projeto “Educação para Convivência”. Com ele, ajudou inúmeras mulheres a tornar o período do cárcere menos sofrido, ao fazerem, juntas — e dentre muitas coisas — , um jornal, um coral em homenagem ao dia das mães e um desfile de moda.
Flavia explica, para começo de conversa, a diferença entre cadeia e presídio — cadeia é o espaço adjunto à delegacia de polícia, para onde os detentos devem ir assim que são presos e, por isso, onde ficam temporariamente. Já o presídio é a estrutura definitiva e, em tese, devidamente equipada para abrigar os encarcerados de maneira que tenham suas necessidades básicas, e mesmo as adicionais, bem oferecidas.
O problema é que, no Brasil, além de os julgamentos demorarem certo tempo para sair, existem poucos presídios femininos, então a mulher acaba, mesmo depois de condenada, cumprindo pena dentro da cadeia. Mas as cadeias não têm estrutura para quem vai ficar muito tempo, tanto no que diz respeito à estrutura básica — como cama e colchão — como em relação às atividades mínimas necessárias para reeducação. E as mulheres da Cadeia Feminina de Santos já estavam lá há tempos, cumprindo pena naquele lugar. Eram 160 em dez celas.
Só para retomar — os relacionamentos de quem está preso
Sabendo do interesse do Lado M também pelo tema da visita íntima, Flavia conta uma história um tanto quanto curiosa. “Tinha um médico que ia à cadeia semanalmente, e fiquei sabendo que o chamavam de dr. Dipirona. Perguntei porque e me disseram que era porque ele só receitava dipirona para as mulheres, independentemente do que elas tinham. ‘Ele fazia isso porque não encostava a mão na gente’, diziam. De repente começaram a rir e a cochichar e me contaram o motivo da piada. Era que, há uns anos, ele fora fazer exame ginecológico em uma presa, e ela estava há tanto tempo sem encostar em um homem que, logo que ele pôs o aparelho nela, ela gozou. Ele ficou desesperado e nunca mais colocou a mão em ninguém”. Segundo ela, esse despreparo também tem a ver com a questão estrutural da cadeia.
Na Cadeia de Santos, existem visitas semanais comuns, mas visita íntima não, porque não tem nem onde acontecer. A visita acontece em um pátio aberto, sem qualquer local especial. Mas outra questão, como diz Flavia e que retoma o que já dissemos antes, é que praticamente não havia visita masculina — os maridos e namorados sumiam depois que suas esposas e namoradas eram presas.
“E os pais de muitas famílias já nem existiam, porque vários são os lares que têm a figura materna como a mais importante”.
Ela comenta que, no dia da visita, vai um policial da delegacia fazer a revista masculina, “mas você via o policial o tempo todo sentado lá, porque não tinha homem para fazer visita”. Em alguns casos, os parceiros também estavam presos. No entanto, de modo geral, sumiam. Flavia explica os motivos que 2/3 das mulheres presas na cadeia são ligadas ao tráfico de drogas ou a favores que fazem para figuras masculinas importantes. “Elas se envolvem no crime a pedido do marido ou namorado e aí é uma peça útil enquanto funcionária. Na hora em que elas são presas, acabam perdendo a utilidade pra eles.”
Ok, e a revista íntima em mulheres? Como as mulheres são tratadas?
Independentemente de a visita ser íntima ou não, a revista corporal existe. Como não tinha espaço onde fazê-la na Cadeia Feminina de Santos, Flavia conta que as mulheres entravam na sala da carceragem, que era uma sala de trabalho, com escrivaninha e gente fazendo seus deveres, e a chefe da carceragem, acompanhada por normalmente mais uma carcereira, fazia a revista íntima em mulheres. Quando eram visitas femininas da mesma família, todas entravam juntas e a revista íntima em mulheres era feita ali mesmo.
As determinações sobre isso dependem do presidio e do estado em que ele se localiza, já que cada unidade da federação tem seu Regimento Interno Padrão (RIP), mas o fato é que acontece com qualquer pessoa — seja avó ou uma criancinha.
“Eu já vi uma senhora de 92 anos passar pela revista íntima em mulheres para entrar no presídio”, diz, incrédula, Heidi, vice-presidente do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania, e coordenadora para a Questão da Mulher Presa da Pastoral Carcerária. Ela conta que, antigamente, se suspeitavam de uma mulher e não achavam nada em seu corpo, levavam-na para o pronto-socorro para fazer exame ginecológico. Tinha médico que falava “eu não sou pago para fazer isso, isso não é emergência e não faço”. Mas sempre havia os que faziam.
A prática da revista vexatória é a regra em todo o país, sendo poucas as unidades prisionais que a proíbem. O advogado Rafael Custódio, coordenador do programa de Justiça da ONG Conectas Direitos Humanos, cita como exemplos positivos as cidades de Goiânia e Joinville, onde os familiares passam por um scanner corporal, “como aqueles de aeroportos”. Mas o scanner, infelizmente, não é a regra.
A revista íntima em mulheres geralmente acontece da seguinte maneira: a pessoa vai para uma sala, coletiva ou individual, mandam-na tirar toda a roupa e pedem-na para agachar algumas vezes. “Já vi até gente ter que agachar sobre um espelho”, diz Heidi. Existem lugares que pedem para a pessoa abrir o corpo com suas mãos, mas também há lugares em que funcionários com luvas põem a mão dentro de seu corpo. Em alguns, as mulheres têm que deitar em cima de uma maca como se estivessem indo para o médico, quando, na verdade, quem está fazendo aquilo tudo é um agente penitenciário e não um de saúde. “E aí ainda dizem que a luva é para proteger a mão do funcionário, e não o corpo da visita, que já é considerado objeto, o que acontece mais fortemente no caso da mulher, vista assim naturalmente”. Existe, ainda, uma espécie de banquinho com um detector de metal dentro — você senta em cima e se tem algo dentro do seu corpo, ele apita. “Tem famílias que me contam que temos que sentar nus ou de roupas íntimas, mas achei engraçado. Será que aquele banquinho sabe quando é família de preso e quando é funcionário ou representante da Igreja, como eu? Por que tem uns procedimentos com uns e outros com outros? É para humilhar, não tem razão”.
E as denúncias de maus tratos? De gente que diz ter sido chamada de feia e de gorda? De criança de quatro anos passando sozinha com um agente masculino, em vez de poder passar com a mãe na revista? “Eu fiquei chocada. Pensei: ‘A mãe vai deixar o filho pequeno ficar pelado na frente de um homem que eles não conhecem?’. E também fiquei chocada que um funcionário faria isso, porque se o menino fizer uma acusação de que foi tocado pelo cara, o funcionário não tem como provar”, estranha Heidi.
Culpa compartilhada
Tudo isso, em um final não muito longe, gira em torno da mania de fazer objeto do corpo do outro e tornar suspeitas pessoas que têm parentes presos. Imagina se considerarmos que 40% dos presos são provisórios, ou seja, não foram nem julgados culpados ou inocentes?
Um grave problema trazido pela revista vexatória são exatamente essas “condenações invisíveis”, como chama Flavia. É essa questão da humilhação que a própria presa, revistada ao ir para o presidio, sente. Quando recebe uma visita, a encarcerada sofre uma nova humilhação, porque é obrigada a expor a pessoa a quem ama, e que a ama, a uma situação completamente degradante, e outra condenação não percebida é a culpa de ter feito essas pessoas passarem por isso. “As presas lamentavam menos sobre a violação que tinham sofrido ao serem revistadas do que sobre isso, principalmente com relação às filhas e às mães”.
Flavia acredita que essa seja uma situação incômoda para todo mundo. “A própria chefe de carceragem, que acompanha esse processo delicado de perto, se sente muito mal”. Mas as funcionárias têm que prevenir a entrada de revólveres ou possíveis objetos perigosos, de drogas e de celulares. “Na Cadeia de Santos, as carcereiras trabalham sem arma, sem nenhum tipo de proteção, e não há guarda armado lá dentro. São as carcereiras e as presas. Elas diziam que era uma coisa muito constrangedora para elas também, mas, ao mesmo tempo, tinham que garantir sua segurança, não tinham outra alternativa”. Como explica, além de não terem um treinamento sobre como fazer isso, não havia nenhum tipo de orientação psicológica para lidar com essas questões. Incomodava quase tanto quem estava sendo revistado como elas.
Ainda assim, Flavia diz nunca ter presenciado nenhum tipo de denúncia em seu local de trabalho. “Logo que entrei lá, ouvi a frase ‘Professora — era assim que me chamavam -, você sabe, né? Aqui é presa de um lado e polícia do outro’. Elas se veem como inimigas”. Depois do desenvolvimento de seu trabalho, a escritora e sócio-fundadora da EducAlma acredita que essa relação tenha melhorado muito, e que, inclusive, ambas as partes passaram a conseguir conversar. “Mas, por melhor que seja a relação, elas nunca vão olhar pra carcereira como olham para a professora”. Elas nunca poderiam ser exatamente amigas, na verdade.
Pelo menos funciona?
Na verdade mesmo, a revista não pega tudo. Flavia conta que já cavaram uma berinjela e esconderam um celular dentro. “Há o dobro da quantidade ideal de pessoas para aquele espaço e um quadro muito reduzido de funcionários para atender a todos. Por mais que você reviste, não há nem tempo hábil pra fazer uma revista 100%. E se elas [carcereiras] não revistam, muitas vezes põem a própria vida em risco”.
Assim, o argumento principal de quem considera a manutenção desta medida é, sem sombra de dúvidas, a segurança. O advogado Rafael Custódio acrescenta um ponto: “Essas revistas abusivas e degradantes seriam necessárias para garantir que não entre drogas, armas, ou celulares nas prisões, mas o uso da tecnologia daria conta tranquilamente desse problema”. Para ele, as medidas invasivas demonstram grande sadismo por parte do Estado.
Este seu ponto de vista é explicado pelo seguinte fato: foram coletados pela Rede de Justiça Criminal, da qual fazem parte Conectas e ITTC, números oficiais que mostram que somente em 0,03% das revistas vexatórias, realizadas no período de 12 meses no estado de São Paulo, foi encontrado esse tipo de material, e em nenhum dos casos registrou-se a tentativa de adentrar com armas. “Ou seja, é uma medida absolutamente desproporcional”, e por isso Custódio a considera extremamente ineficaz.
Então o que deve ser feito?
As violações que ocorrem cotidianamente nas prisões e cadeias brasileiras não despertam atenção do Estado nem da sociedade em geral, acredita o advogado. Pior: acabam passando despercebidas por eles. “O poder público se sente confortável com essa invisibilidade, pois não é cobrado, e o cidadão comum acha que o preso está lá porque ‘mereceu’”, diz. Seria algo como “eu, ‘cidadão de bem’, nada tenho com isso. Logo, se os parentes dos presos passam por revistas vexatórias, não me sinto atingido, pois eles são os outros, são distantes”.
Custódio sugere que, nos casos em que houver suspeita em relação à visita, ela deverá se manifestar sobre se aceita passar por uma revista íntima, preservando seus direitos, ou se prefere realizar a visita somente através dos parlatórios, aqueles lugares nas prisões onde não há contato físico entre a visita e o preso. Dessa forma, segundo o membro do Conectas, seria impossível o parente ou o amigo passar algum tipo de objeto ao preso, ao passo que mantém preservadas sua dignidade e sua intimidade. Inclusive, essas propostas fazem parte do Projeto de Lei 480 de 2013, que a senadora Ana Rita (PT/ES) apresentou ao Senado, prevendo que a revista de visitantes não possa exigir que qualquer pessoa tenha que se despir completamente.
Heidi é outra ativista ferrenha contra a medida, e o ITTC, onde é uma das coordenadoras, tem um parecer bastante explicado sobre isso. Ela acredita que, talvez, se tivéssemos, no Brasil, um salário melhor para os funcionários penitenciários, já teriamos um bom caminho andado. Quem sabe isso não seja atingido com as reivindicações dos agentes que estão acontecendo neste momento?
Uma outra forma de melhorar essas questões, para Flavia, é se aprofundar no assunto da revista. Ver qual é a melhor maneira de ser tratado, ter especialistas que forneçam orientação sobre como fazê-la, e promover conversas mais respeitosas. “A situação ideal seria que houvesse um olhar de saúde, de humanidade, e um olhar de segurança”, diz. “Se existe alguma outra solução, o Brasil ainda não está perto de se aproximar dela. A maneira ideal é tentar fazer isso de um jeito mais humano mesmo”. Ainda que não exista saída pra casos extremos, Flavia acha importante que isso seja trabalhado para que, principalmente, não condene a presa a ser uma pessoa com ainda mais dificuldades.
Mas é fundamental ressaltar que, com ou sem envolvimento da sociedade, o Estado tem o dever de agir para prevenir violações de direitos humanos. É justamente para estimular essa atitude que o Conectas relatou a prática da revista vexatória nos presídios brasileiros aos países membros do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, reunidos para a 25ª sessão ordinária do órgão, em Genebra, na Suíça. A organização pede, ainda, à ONU que o Brasil seja instado a pôr um fim imediato a esta prática. Confira aqui a exposição completa ao Conselho.
Originally published at www.siteladom.com.br on March 20, 2014.