Apresentação da BaterECA, bateria da Escola de Comunicações e Artes da USP, na Seletiva do Balatucada em 2017

Como é ser mulher em baterias universitárias?

Relatos de como é tocar, ocupar e resistir aos casos de machismo como uma mina

Aline Naomi
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9 min readAug 19, 2019

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“Acredito que o ambiente de baterias universitárias seja o mais desconstruído hoje em dia”, me disseram uma vez. A gente tende a achar esse tipo de coisa quando passa a fazer parte de um grupo e, ao nosso redor, todo mundo parece respeitar as diferenças, fazer textão no Facebook sobre as injustiças sociais e usar filtro de “Ele Não”. Como a gente bem sabe, o que vemos em nossas bolhas não reflete a totalidade de um grupo, e o que eu vi nesses cinco anos de batuque é que a caminhada para a desconstrução ainda é longa.

O batuque é machista

Fazer barulho nas arquibancadas dos jogos, tocar em festas e formaturas e participar de competições com apresentações de alto nível: essas são algumas das atividades realizadas pelas baterias universitárias, também chamadas de BUs. Os instrumentos usados pelos grupos são os mesmos utilizados nas escolas de samba e, por isso, há um diálogo crescente entre esses dois ambientes.

Dando um biscoito para minha bateria, a BaterECA, para dar um exemplo de o que uma BU faz (neste caso, tocar em competição)

Como nas BUs, nas universidades e em tantos outros contextos sociais, também há lugar para o machismo no samba. Para se ter uma ideia, em 2017, nas duas principais divisões do Carnaval do Rio de Janeiro e de São Paulo, apenas 10% dos presidentes eram mulheres. Em 2015, a mestra Nayara Crystina, da G.R.E.S. Igrejinha, de Campo Grande (MS), foi a única mestre de bateria mulher do país, e foi em 2019 que o Carnaval carioca teve sua primeira e única mestra de bateria, a Thais Rodrigues, da G.R.E.S. Feitiço do Rio.

Se nas escolas de samba as mulheres encontram obstáculos para provar sua capacidade em um ambiente dominado por homens, ocupar espaços de liderança e mostrar que podemos, sim, ser mais que corpos objetificados no Carnaval, nas baterias universitárias o papo não é muito diferente.

Gabriela* cursou dois anos de medicina veterinária no interior de São Paulo, abandonado a graduação e voltando para a capital, onde se prepara em um cursinho pré-vestibular. Em seu antigo campus, ela teve seu primeiro contato com uma bateria universitária, que era gerida por cinco pessoas, sendo apenas uma delas mulher. “Estive imersa em uma cultura muito machista. Lá, desde quando entramos, os trotes já indicam ao que iremos nos submeter por ali”.

Mesmo reconhecendo que sua bateria era mais “cabeça aberta” em relação aos demais estudantes, o ambiente não era livre do machismo. “Sempre sentia que tinha que provar que era capaz para eles, porque a voz deles era a que ditava o ritmo da bateria”. E mesmo com evidências de que era uma boa ritmista, Gabriela não era reconhecida. “Com três competições e dois estandartes no meu naipe, nunca fui levada a sério e tinha gente metendo o dedo no trabalho que eu fazia na ala da qual era diretora”.

Sua saída da bateria foi desgastante. “Quando olho para trás, vejo que apenas dois ou três homens comandavam o grupo todo e, por estarmos acostumadas com esse tipo de dominação, não enxergávamos o que estava acontecendo de fato. Nossa voz, apesar de presente, era baixíssima em comparação a deles, e para conseguir respeito, precisávamos percorrer um caminho mais tortuoso do que dos rapazes”.

Atualmente, Gabriela toca na bateria universitária de uma instituição em que não está matriculada — o que a impede apenas de participar dos torneios — e diz se sentir mais confortável do que estava na bateria de sua antiga faculdade. “Hoje, essas frustrações servem de combustível para mostrar que sou capaz. Seria incrível ser para outras mulheres o que as ritmistas fodonas são para mim, porque elas foram essenciais para que eu continuasse tentando”.

Marielli Costa é ritmista da bateria Bandida, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP (EACH-USP). Ela conta que quando entrou na entidade, em 2012, havia menos de 10 veteranas, e todas elas tocavam chocalho ou tamborim, instrumentos tidos como “femininos”. Além disso, as meninas eram obrigadas a usarem saia e sapatilha nas apresentações.

“Por incrível que pareça, a gente achava isso normal. Nossa cabeça naquela época também era outra, a gente só aceitava, mas lá no fundo eu sentia que isso não era normal. Não tínhamos vez para decidir as coisas, não podíamos opinar na criação dos breques. Por mais que falássemos, não éramos muito ouvidas. Os caras podem até retrucar falando que tínhamos espaço aberto, mas não era bem assim. Como você se sentiria indo em uma reunião de criação em que havia outros 10 homens?”

Marielli se tornou presidente da Bandida em 2013 e, mesmo ocupando um cargo tão importante, não sentia que sua voz era ouvida. “Eu me sentia muito excluída e dependente. Não podia tomar nenhuma decisão sozinha, senão meus veteranos caíam matando em cima de mim. Era bem ruim, mas sabia que eu era uma sementinha crescendo”. Depois de Marielli, outras mulheres passaram a ocupar a presidência, as diretorias administrativas e de ritmo e, em 2015, a bateria teve sua primeira mestra.

Depois disso, a Bandida promoveu projetos para acabar com o machismo dentro da entidade. “Hoje em dia existem menos casos claros de machismo, mas o mainsplaning ainda reina bastante nas discussões, mas vejo que a bateria evoluiu muito de lá para cá”.

A mudança aparece não só na Bandida, mas nas baterias universitárias como um todo. “Quando entrei na presidência, ia para reuniões com outras baterias e normalmente eu era a única mulher ou tinham mais uma ou duas comigo. Hoje em dia, vejo muitas mulheres presidentes, nas diretorias, como mestre”.

Para Marielli, essa representatividade em cargos de liderança é de vital importância para que cada vez mais mulheres ocupem esses espaços. “Além de ser representativo para as outras mulheres se sentirem confortáveis e quererem fazer qualquer coisa dentro da entidade, é prova de que somos fortes e inteligentes no que fazemos”.

Sentir que precisa se esforçar mil vezes mais para mostrar sua capacidade rítmica, sentir-se desconfortável em ambientes em que você é a única mulher, ver abusadores permanecendo nos espaços de convívio das baterias universitárias sem qualquer tipo de retaliação: essas eram algumas das coisas que me incomodavam (e ainda incomodam) e que me fizeram questionar se eu estava sentindo esse incômodo sozinha.

Por isso, em 2018, tive a ideia de fazer um trabalho acadêmico para uma disciplina da ECA sobre o tema e lançar um formulário online anônimo nos principais grupos de BU aos que tinha acesso. Em uma semana, coletei as respostas de 616 ritmistas de 59 municípios em oito Unidades Federativas do país.

46% das rimistas que responderam afirmam já terem escutado comentários machistas de outros de ritmistas, e a porcentagem aumenta quando o comentário é especificamente sobre ser mulher e tocar um determinado instrumento: 61% das ritmistas já escutaram comentários como “o surdo é muito pesado para mulher tocar” ou “mulher não aguenta tocar caixa”.

40% das ritmistas já sentiram que sua opinião foi desvalorizada por conta do gênero e 45% já sentiram dificuldade em serem reconhecidas como boas ritmistas, tendo que se provar mais do que os homens. Em relação à mestragem, cargo fundamental de liderança dentro do ritmo, 45% das respondentes afirmaram que sua bateria nunca teve uma mestra.

O formulário também deixava um espaço aberto para comentários abertos: foram cerca de 130 respostas de mulheres que tinham relatos sobre situações de machismo que sofreram ou presenciaram.

Desde “piadas” desnecessárias sobre ritmo e gênero a casos de abuso sem resolução, esses depoimentos fazem com que eu reflita se, de fato, o ambiente de baterias universitárias é tão acolhedor e desconstruído quanto pensamos. Por mais que essa seja a intenção em muitas baterias e que muita coisa tenha caminhado em relação ao machismo nas BUs, se queremos ter um ambiente o mais livre possível de preconceitos, precisaremos ir para além dos discursos caça-likes e avançar muito em nossas práticas.

Eu ouvi, em tom de brincadeira, que era o elo fraco do meu naipe, composto por mim e mais dois homens e do qual sou co-diretora.

Já ouvi de um homem, que não era da minha bateria, que quem aprende a tocar tamborim com uma mulher vai errar na hora do desafio.

Já tive que ouvir que eu erraria os breques porque, para mulher, é mais difícil estar na marcação e que eu iria acelerar a apresentação.

Estava com dificuldade de aprender um breque e fui humilhada na frente de todo mundo com gritos.

Na hora de passar os breques, o mestre só chama os meninos como se a gente fosse menos capaz de pegar o ritmo das coisas.

Estou no naipe de tamborim e sou diretora dele. Depois que entrou um menino amigo do mestre, ele só se refere ao naipe por esse menino, mesmo se estou ao lado dele.

Às vezes sinto como se precisasse provar meu valor e me esforçar muito mais do que meus companheiros de naipe (homens) pra ser reconhecida.

Na minha bateria o que mais ocorre é a desvalorização de ideias que as minas dão. A sensação que a gente tem é que por ser menina não dão moral e se é um menino falando a mesma coisa a recepção é diferente.

Já ouvi de pessoas de outras baterias que bateria regida por mulher não ia pra frente.

Quem aponta os casos de machismo é sempre silenciada.

Ao denunciar abusos — inclusive por parte do mestre — sofri retaliação e muito dano emocional.

Fizemos um workshop com percussionistas homens e minha performance no instrumento foi elogiada. Os comentários que saíram dessa situação foi que recebi o elogio por ser mulher e que os percussionistas estavam dando em cima de mim.

O hino oficial da bateria e algumas músicas cantadas são totalmente machistas, e isso é algo que me incomoda desde o primeiro ano da faculdade. Eu amo minha bateria e amo fazer parte dela, tanto como ritmista quanto na gestão, mas é muito triste ver que essas letras continuam passando de geração em geração com a justificativa de que “é tradição”.

Ano passado, eu tocava caixa e a bateria participaria de duas competições. Fui escalada para as duas (a única mulher da caixa). Durante os ensaios da competição, quando a caixa errava, vazava ou até mesmo acelerava, o mestre olhava primeiro na minha direção.

Um ritmista não aceita ser corrigido por uma pessoa específica, ou melhor, por uma mulher. Extremamente machista, não acha que mulheres têm razão. Isso é muito triste. Sou mulher, serei a próxima mestre e, por ele “não querer” ouvir uma mulher mestre, sairá da bateria ano que vem.

Quando fui me tornar mestre de bateria, fui extremamente desacreditada pelos homens que eram diretores. Fui interrompida na minha fala, quiseram ensinar a tocar por cima do que eu ensinava porque não achavam que eu era boa o suficiente, paravam de tocar enquanto eu apitava por considerarem que algo estava errado. Fui abrindo meu espaço e me fazendo ser ouvida. Ganhei minha primeira competição e só aí passaram a me respeitar. Hoje sou respeitada e procurada não só pela minha, mas por outras baterias do Estado porque fui a primeira mestra por aqui.

Sou a única diretora de naipe mulher desde quando nossa bateria foi fundada (há 3 anos atrás) e tenho que falar muito mais “alto” para ser ouvida em reuniões em que tiramos músicas ou quando decidimos quais ritmistas irão fazer a apresentação. Isso acontece sem os meninos perceberem. Hoje em dia eles tomam mais cuidado, mas foi necessário bastante conversa, muita paciência e eu tive que ensaiar muito para me “provar”.

Eu tive que insistir muito para entenderem que eu não queria tocar chocalho e sim repique! A nossa bateria tinha uma cultura um pouco machista nos naipes da cozinha. Ano passado, tocamos com a primeira caixista em 9 anos de história. Eu bati o pé e agora estou no meu instrumento do coração. Ano que vem, se tudo der certo e eu sei que só depende de mim pra dar, a bateria vai tocar com sua primeira repiniqueira em seus 10 anos!

Sinto que os homens ainda sentem que bateria é assunto só de homens, só homens conseguem pegar ritmo, só homens tem força para carregar instrumentos, o que não é verdade. Somos fortes, somos guerreiras, temos ritmo, temos jeito, compartilhamos da mesma paixão, o samba! Deixem-nos extravasar essa paixão, sem contar que mulher tocando, seja lá o instrumento que for, arrepia a alma.

[AVISO DE GATILHO: Abuso]

Os depoimentos a seguir tratam de abusos sofridos por ritmistas.

Meu ex-namorado é de bateria universitária, já me bateu e aprontou várias comigo. Ele continua tocando na bateria dele como se nada tivesse acontecido. Me falaram que ele foi proibido de ir a um campeonato, mas não sei a veracidade disso. Só espero que o que aconteceu comigo não se repita com mais ninguém.

Um garoto da bateria se sentiu no direito de comentar comigo sobre os meus seios, se referindo ao tamanho e demonstrando opinião. O mesmo garoto também se sentiu no direito de por a mão na minha coxa/bunda sem consentimento. Sinto que as vezes, na minha bateria, as pessoas confundem o ambiente de proximidade e apoio ao próximo como permissão para fazer e falar o que quiser, quando quiser, com/sobre alguém, especialmente se direcionando às mulheres.

Num primeiro momento, quando o nosso mestre abusou várias vezes de pessoas de fora e de dentro da bateria, ninguém fez nada porque ele era amigo de “todas as meninas”, então todo mundo (menos alguns casos) ajudaram ele. Numa segunda vez que isso aconteceu, as pessoas tiraram ele da mestragem e da bateria, mas foi muito difícil de ser feito porque ficaram com dó do cara.

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Aline Naomi
Lado M
Writer for

Jornalista formada pela USP, feminista e influencer anônima. Gosto de conhecer e contar histórias e acredito que elas têm o poder de transformar o mundo.