Como as maiores religiões se relacionam com as pessoas trans
O ano de 2015 começou com uma notícia difícil para as alas mais conservadoras da Igreja Católica: em janeiro, o papa Francisco recebeu no Vaticano o espanhol Diego Neria Lejárraga, um homem transexual.
Lejárraga foi excluído da paróquia onde costumava ir, em Plasencia, na Espanha, depois de fazer sua transição. Ele decidiu enviar cartas ao pontífice comentando os episódios de intolerância e foi convidado para uma audiência no Vaticano. Apesar de o conteúdo da conversa não ter sido divulgado, o encontro representa um passo importante dado pela Igreja (o que não quer dizer que o caminho a ser percorrido seja pequeno).
Enquanto o papa Francisco, pressionado, abre as portas do Vaticano a um transexual, a maioria dos fiéis ainda insiste em blindar a religião à diversidade. Um exemplo recente disso é a trajetória trágica da norte-americana Leelah Alcorn.
Batizada pelos pais como Josh, Leelah não se identificava com o gênero masculino desde a infância. Seus pais nunca aceitaram que a filha fizesse a transição, sob a justificativa de que Deus não comete enganos (então por que cometeria justo com o gênero de Josh, não é mesmo?). Leelah foi isolada dos amigos, do contato com a internet e impedida de receber o tratamento adequado. Ela cometeu suicídio no ano passado e deixou uma carta responsabilizando a repressão da família pela tragédia.
“Eles queriam que eu fosse seu garotinho cristão perfeito, e obviamente isso não era o que eu queria”. “O único jeito de eu descansar em paz é se um dia os transgêneros não forem mais tratados desse jeito, mas tratados como humanos, com sentimentos legítimos e direitos humanos. A questão de gênero precisa ser discutida nas escolas, quanto mais cedo, melhor. Minha morte precisa significar alguma coisa.” diz ela no texto, publicado no Tumblr no dia de sua morte.
Quem me falou sobre Leelah foi Jéssica Milaré, que também já se sentiu deslocada no ambiente religioso e não teve apoio dos pais ao contar que se identifica como uma mulher trans. Autora do blog Uma Travesti Marxista, Jéssica frequentou um grupo de jovens católicos na cidade onde nasceu dos 14 aos 17 anos. O grupo se organizava hierarquicamente, em uma espécie de escala espiritual a ser percorrida pelos jovens. Ela ganhou antipatia do coordenador do grupo e foi sistematicamente reprovada nos “testes” de espiritualidade. Mais tarde, decidiu escrever na internet sobre a péssima experiência na comunidade e foi ameaçada pelo supervisor.
Jéssica passou a se identificar como uma mulher trans depois de ter deixado o grupo, mas hoje entende que já naquela época era vítima de preconceito, disfarçado de falta de aptidão. Com o tempo, ela foi se afastando do catolicismo. “Hoje eu entendo a Bíblia como algo feito por seres humanos e para seres humanos, o que de certa forma alivia essa opressão”, ela explica, por ter sofrido com o peso dos argumentos sagrados — e portanto irrefutáveis — durante a infância e a adolescência.
Criada em uma família católica, Jéssica precisa se apresentar na casa dos pais com o nome de registro. Perguntei se isso tinha algum fundo religioso e ela me contou que eles ainda relacionam transexualidade a pecado.
Cuidado: cenas bíblicas fortes
As divergências entre religião e identidade de gênero, no caso do Antigo e do Novo Testamento, começam nas primeiras páginas da Bíblia. No livro “Gênesis”, Deus cria dois seres humanos cisgêneros e heterossexuais. É necessário mencionar que Eva deve sua existência a Adão, porque foi gerada a partir da costela dele. Pra quem ainda não sabe, mais pra frente ela é quem vai dar o bote no fruto proibido e portanto acabar com a festa no paraíso. Quer dizer: estamos sujeitos ao binarismo de gênero, ao patriarcado e à misoginia desde que o mundo é mundo. Ou desde que a Bíblia é a Bíblia.
Acontece que não precisa ir muito a fundo nos textos bíblicos pra entender que eles não são tão precisos quanto um manual de instrução e que a reprodução dos conhecimentos religiosos é menos objetiva do que parece. Aí é que mora o perigo: será que estamos preocupados em questionar o que lemos? Ou a maneira como lemos? Ou como aprendemos a ler? “As fontes rabínicas falam que cada trecho da Torá [a Bíblia dos judeus] tem cerca de 70 interpretações possíveis”, conta Camilo Zayit Seleguini, diretor de uma sinagoga inclusiva em São Paulo. Camilo, assim como outros membros de correntes religiosas igualitárias, defende que a intolerância não se deve aos escritos da Bíblia, mas à leitura submetida a uma cultura extremamente conservadora.
O projeto inclusivo da sinagoga Bnei Abraham surgiu há cerca de um ano. O judaísmo é o mesmo, as cerimônias são as mesmas, mas machismo e LGBTfobia estão fora. Por exemplo: é comum entre os judeus separar homens e mulheres durante os serviços religiosos. Lá eles abandonaram esse costume e adaptaram as rezas de modo que todos se sintam igualmente representados. “Se nós nos reunimos aqui com a intenção de nos conectar a Deus, no sentido mais coletivo que isso possa significar, e não percebemos o outro, não faz sentido nenhum nos reunirmos aqui, né?” diz Yossi ben Abraham, responsável pelas prédicas na sinagoga.
Sobre a questão de identidade de gênero na Bíblia, Camilo argumenta: “Na Cabalá [a parte mística da Torá] tem uma categoria chamada Tumtum, que significa ‘sem gênero’. Pela Cabalá, Abraão e Sara eram Tumtum. Eles se casam e aí aparece um anjo dizendo que ela ficaria grávida. Então Sara recebe um útero para dar origem ao povo judeu. Já no século II isso é tratado, mas ficou escondido”.
Para ele, parte do conservadorismo que atribuímos à Bíblia é herança dos costumes da Idade Média: “A sexualidade era demonizada nesse período. Os judeus que viviam entre as nações católicas se adaptaram à cultura da época. Até por volta do ano 900, eles eram poligâmicos e, assim como a questão de gênero, isso parou de ser discutido, em função dos costumes da época.”
Yossi também aponta a necessidade de questionar e atualizar as leituras. Ele justifica:
“Os próprios textos da Torá muitas vezes vão se adaptando dentro dela mesma. Em uma passagem do Antigo Testamento, Zelofeade [um personagem bíblico] morre e deixa apenas filhas mulheres, que de acordo com as regras vigentes, não teriam direito à herança. Moisés pede a Deus que altere essa lei, para que elas possam usufruir dos bens do pai, e ele concede a mudança.”
As definições de Bíblia foram atualizadas
As igrejas igualitárias tomaram proporções maiores nos últimos tempos. No Brasil, onde teologia inclusiva começou a ser discutida por volta dos anos 90, os primeiros grupos religiosos a levantar essa bandeira se estabeleceram oficialmente há pouco mais de uma década, como é o caso da Igreja da Comunidade Metropolitana, a primeira do país. Atualmente, são cerca de dez igrejas, católicas e evangélicas, que lutam a favor da diversidade. Muitas dessas igrejas, além do acolhimento e apoio psicológico, oferecem também assistência jurídica para os fiéis.
Em 2013, foi nomeado nos Estados Unidos o primeiro padre transexual da Igreja Católica Apostólica Antiga, que é uma vertente independente do Vaticano. Shannon Kearns foi criado em uma igreja evangélica fundamentalista e cresceu precisando esconder sua falta de identificação com o gênero feminino. Hoje, o padre é membro de uma comunidade que tem como missão realizar rituais tradicionais aliados às “práticas modernas”. “Eu sei que não é todo mundo que quer fazer parte de uma comunidade religiosa, e respeito isso, mas para os que querem, por favor saibam que existem comunidades religiosas que valorizam você e onde não é necessário esconder nenhuma parte de você mesmo”, ele escreveu em um texto para o Huffington Post.
Sobre representatividade
Um dos grandes problemas pelos quais passam as pessoas trans com religiões que utilizam Antigo e Novo Testamento é a dificuldade de identificação. Não é todo mundo que se vê representado na história contada através da Bíblia, que retrata as experiências de seres humanos cisgêneros e heterossexuais e demoniza tudo o que não tiver lugar nessa estrutura.
Em religiões de matriz africana, por exemplo, a dificuldade de representação é uma questão menos presente. Isto porque as fronteiras de gênero não são engessadas como no judaísmo ou no catolicismo. Assim como nas demais religiões, são feitas demarcações do feminino e do masculino, mas homens e mulheres transitam pelas duas. Além disso, não existem confissões, pecados ou documentos institucionais com listas de práticas condenáveis.
Em uma entrevista para o programa LadoBi sobre o candomblé, o professor senior do Departamento de Sociologia da USP Reginaldo Prandi e o pai de santo e antropólogo Rodney de Oxossi esclarecem a existência de orixás masculinos, femininos e de ambos os gêneros, os chamados “metá-metá” — como é o caso de Logun Edé e Oxumarê. E afirmam: tanto homens quanto mulheres podem ser filhos de orixás das três categorias e, portanto, são formados por traços de todos os gêneros.
“Uma coisa que é decisiva no candomblé é que cada um deve ser o que é. Ou seja, cada um deve se reconciliar consigo mesmo, que é a única forma de encontrar um equilibrio com a sua origem, com a sua natureza”, diz Prandi na entrevista.
Identidade de gênero é sempre um ponto sensível nas religiões, mesmo nas que apresentam visões menos reducionistas sobre o tema. Na Índia, por exemplo, diversos escritos sagrados e obras clássicas, como o Mahabharata e o Ramayana, fazem menções a transexuais sem julgamentos negativos. As pessoas trans no país, no entanto, fazem parte de um grupo extremamente marginalizado: as hijras.
Existe a crença de que as hijras têm o poder de trazer boa ou má sorte às pessoas, por isso é comum encontrá-las em cerimônias religiosas. O problema é que às que não estão se apresentando em casamentos e outras celebrações restam poucas alternativas. Apesar das políticas de assistência realizadas nos últimos anos pelo governo — como a garantia de vagas em empregos públicos e no sistema educacional — a mais comum delas ainda é a prostituição.
Uma das explicações possíveis para o descompasso entre a visão religiosa da questão de gênero e o jeito como vivem as pessoas trans na Índia é a influência da colonização britânica, especialmente durante o século XVIII. Outra herança do período é a lei que criminaliza relações homossexuais (e que pasmem: vigora até hoje).
Os maiores exemplos de conservadorismo e intolerância na religião acabam, no final das contas, passando direta ou indiretamente — como no caso da influência britânica na Índia — pelos textos bíblicos. Por isso a necessidade do olhar atento para o que estamos reproduzindo através da Bíblia. Ou melhor, para o que queremos reproduzir através da Bíblia (justificativas para atitudes opressoras?). Seria mais fácil entender a opressão não pelas religiões, mas pelos religiosos. Pelas relações de poder, pela briga por controle e pela necessidade da manutenção de dogmas.
Em outubro, bispos do mundo inteiro se reúnem para uma assembleia geral, o Sínodo dos Bispos Sobre a Família. O tema do encontro é “a vocação e missão da família na Igreja e no mundo contemporâneo”, num momento em que a abertura da comunidade católica se faz cada vez mais necessária e possível — especialmente com a ascensão das igrejas inclusivas e das propostas de releitura dos valores judaico-cristãos. Então resta uma esperança de que o ano no Vaticano acabe de maneira tão positiva quanto começou (o que não quer dizer que o caminho a ser percorrido seja pequeno).
Originally published at www.siteladom.com.br on August 29, 2015.