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Como as mulheres são vistas pelas maiores religiões do mundo?

Bianka Vieira
Lado M
Published in
4 min readAug 24, 2015

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E pensar que bastou uma mordida no fruto proibido para que recaísse sobre a mulher a culpa pelo pecado original e por todas as aberrações subsequentes cometidas pela humanidade. Eva, ao seguir sua curiosidade e desafiar as regras, fora condenada a ser subjugada por seu marido, a abster-se do desejo sexual, menstruar periodicamente e a sentir fortes dores no parto. Adão, por sua vez, também recebeu uns poucos castigos; afinal, onde já se viu dar ouvidos a uma mulher?

Ainda que o exemplo acima se limite ao Velho Testamento judaico-cristão, a menção se propõe a algo muito maior: apesar de guerras e conflitos marcados por divergências históricas, há, nas religiões com maior número de seguidores do mundo, um elo comum em meio a todo esse caos: o papel secundarista comumente imposto à mulher.

A não ser por algumas poucas exceções, a mulher foi cruelmente apartada, desonrada e desprestigiada nas grandes religiões tradicionais. Embora estejam sujeitas a inúmeras releituras, a estrutura dogmática de cada uma dessas vertentes nutriu (e nutre), por meio de suas escrituras sagradas, a legitimação da submissão do sexo feminino.

Com os monoteísmos em voga, o endeusamento da figura feminina recorrente nas religiões politeístas foi anulado. Mesmo que se entregasse de corpo e alma à sua fé, a mulher passou a ser configurada como um ser de pouca importância do ponto de vista religioso e filosófico.

Para Marina de Oliveira Soares, doutora em História Social pela Universidade de São Paulo, esse viés, além de oferecer morada a visões reducionistas e machistas, também permite que ele continue presente na condução da organização interna das instituições religiosas. Além disso, ela também acredita que a ausência da reflexão contextualizada acerca das origens e aplicações de fontes dogmáticas potencializa a deturpação do papel da mulher nesse meio.

“Temos visto como a união desses elementos tem cooperado para gerar resultados nefastos na vida cotidiana de mulheres no mundo todo. O exemplo do hinduísmo na Índia é bastante elucidativo a esse respeito. Se considerarmos que pouco mais de 80% da população indiana é formada por hindus, e que as mulheres na Índia continuam sendo mortas em larga escala, estupradas, obrigadas a se casarem precocemente, não há como nos furtarmos a apontar o poder da religião na criação deste cenário. Afinal, a preferência por descendência masculina está presente nas próprias escrituras sagradas indianas, como no Atharvaveda”, explica.

Nem sempre os atos discriminatórios estão protocolados em livros sacros, o que coloca em cena o contexto cultural ao qual uma sociedade pertence. Em muitos países muçulmanos, por exemplo, é proibido que a mulher dirija. Esse é um tipo de norma oriunda do próprio país, não de uma lei islâmica.

É, também, preciso ponderar. A recente consagração da teologia do estupro pelo Estado Islâmico em nome de Maomé, a obrigatoriedade das vestimentas e a monogamia obrigatória para as muçulmanas tecem um imaginário que ofusca o fato de o Islã ter sido a primeira religião a conceder o direito ao divórcio à mulher e a não restringir o uso de anticoncepcionais e camisinha.

“A atuação social das mulheres muçulmanas variou bastante ao longo do tempo, o que significa que houve momentos mais favoráveis à sua independência e participação política e cultural, e períodos de maior reclusão. Diante disso, seria um erro apontar a reclusão e submissão femininas como características inerentes ao islamismo. De outro modo, ainda vemos uma tendência de polarização nas representações sobre as mulheres muçulmanas divulgadas pela mídia europeia e norte-americana e reproduzidas pelos brasileiros”, diz Marina.

Outro caso que exemplifica a mescla entre vícios culturais e princípios doutrinários é o budismo. Ainda que se reverencie a mente iluminada independentemente do gênero e se entenda que tanto o homem quanto a mulher tenham a natureza de Buda dentro de si, do ponto de vista social a práxis é diferente.

No budismo, a mulher é concebida como alguém perigoso por despertar no homem desejos que o impediriam de chegar ao Nirvana, como se a corporeidade feminina se apresentasse em forma de empecilho na relação homem-sagrado. Após grande resistência, as mulheres foram admitidas à vida monástica, porém sob a condição de subordinação aos monges.

Dentro desse panorama ilustrativo, é possível ir ainda mais longe e versar, por exemplo, sobre o fato do Talmud (um texto central para o judaísmo acerca das leis, ética e costumes) dizer que mais vale queimar a Torá que confiá-la a uma mulher; ou, ainda, sobre a Igreja Católica apregoar que a mulher deveria cuidar do homem e do lar, ao tempo em que lhe restava se calar na Igreja.

Questão de fé

No movimento feminista, é comum que mulheres que aderem a tradições antigas sejam vistas como retrógradas. Com a empreitada feminina pela obtenção de direitos e com as mudanças conquistadas nas décadas recentes, alguns setores entendem que, ao optar pela fé, elas simplesmente abrem mão de tudo isso em função de uma vida de privações.

Para a historiadora Marina de Oliveira Soares, a relação não é direta. “Uma mulher que busca conforto espiritual numa instituição religiosa não precisa — e, em última instância, não deve — deixar de se posicionar diante daquilo que considera discriminatório. Há aquelas mulheres que continuam declarando sua fé e se posicionam publicamente contra a misoginia da tradição religiosa da qual fazem parte, e há mulheres que se mantêm vinculadas às instituições e criam grupos feministas que se articulam presencialmente ou através de ações virtuais”.

Como exemplo, Marina cita a socióloga marroquina e muçulmana Fatima Mernissi, que têm se manifestado amplamente contra as interpretações feitas por muçulmanos acerca do Alcorão e dos ahadith (ditos do profeta islâmico), e o coletivo Católicas Pelo Direito de Decidir.

“De qualquer maneira, vivemos um período mais de intolerância do que de diálogo, o que nos anuncia um longo caminho de luta pela tolerância, respeito e convivência”, conclui a historiadora.

Originally published at www.siteladom.com.br on August 24, 2015.

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