Continuo Preta: a vida de Sueli Carneiro

Beatriz Saraiva
Lado M
4 min readJul 26, 2021

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Contar histórias de mulheres negras é criar possibilidades de caminhos para as próximas que virão. Assim interpretou a jornalista negra, Bianca Santana, ao escrever esta biografia Continuo Preta sobre umas das principais figuras do movimento negro e intelectual do país: Sueli Carneiro.

Se você ainda não conhece a ativista, este é o momento oportuno para conhecê-la. Sueli Carneiro é fundadora do Geledés — Instituto da Mulher Negra — sempre se reconheceu negra e, igualmente, sempre soube que precisaria ocupar o “mundo branco” para que este mundo desse lugar ao que sempre foi nosso por direito: um lugar de destaque e de luta na sociedade. Onde o preto e a preta possam ser protagonistas das próprias histórias. E se envolver em políticas públicas para criar espaços pra gente preta, como eu, é um dos maiores legados de Sueli

“Eu prometo que o senhor não vai precisar fazer isso de novo. Não que não seja uma honra ser representada, mas o senhor não vai nos representar. Porque nós vamos chegar”, disse Sueli a Abdias Nascimento, grande nome do movimento negro, em um julgamento que remonta a época de 1982.

E ela chegou junto com muitas pretas. Ativista e acadêmica, entre muitos outros títulos, Sueli está há quatro décadas no ativismo da luta antirracista e feminista. Ela assumiu prioridades como denunciar a situação da mulher negra dentro de um país que se diz dono de uma democracia racial brasileira.

Continuo Preta: a vida de Sueli Carneiro

É com muita sensibilidade e força que Bianca nos apresenta, ao longo de 281 páginas, a vida de Sueli. Ela mergulha entre a vida individual e coletiva da ativista que, por muitas vezes, se torna uma só história. Como ninguém, Bianca narra a infância de Sueli pegando cada detalhe. Um dos mais importantes para mim é o período escolar: “A vida escolar de Sueli foi uma experiência bastante solitária. Nunca teve professores negros. Sentia-se permanentemente convocada a provar sua capacidade”. Quantas vezes você, preta, já não se sentiu assim?

Na tentativa de começar desde o início, ao remontar e traçar de forma hipotética o sobrenome Carneiro, a autora tenta construir uma linha cronológica dos antepassados de Sueli. Isso despertou em mim a necessidade de traçar a cronologia do meu sobrenome, que coincidentemente também é Carneiro.

Filha de José Horário Carneiro e Eva Camargo Alves, Sueli, muito tinhosa, começou seu ativismo desde muito cedo em 1964, com apenas 14 anos, a ativista organizou, junto a outras meninas brancas, uma manifestação em protesto contra o golpe militar. Desde então, ela não parou com sua luta.

A menina, que começou a lutar nas ruas pelos direitos do seu povo, também testemunhou desde muito cedo a violência doméstica sofrida por sua mãe dentro de casa. Horário era alcoólatra. Ao relatar esses acontecimentos, a autora traz um debate importante: “O alcoolismo é um espectro que com frequência ronda as famílias negras, diretamente ligado às dificuldades de ser negro e negra neste país, com todo o sofrimento, a exclusão e a discriminação que o racismo produz”.

Ao casar com um homem branco, a autora toca em outro ponto importante. Sueli sentiu na pele o julgamento de uma sociedade racista que não permite que uma mulher negra mantenha um relacionamento com um branco. A mulher negra, quanto mais escuro seu tom de pele, mais é vista como inferior aos olhos de uma sociedade racista. Sendo desprovida por esta do direito humano de amar e ser amada.

“A possibilidade de protagonismo das mulheres negras passava exatamente por valorizar as características que tantas vezes eram utilizadas para nos subjugar”.

Sueli passou por maus bocados para lutar com outras mulheres negras para se colocarem como protagonistas de uma luta por direitos. Ela precisou conciliar maternidade, trabalho e militância. Lutou por meio da escrita, como diz a escritora. Cada texto foi uma espada em uma batalha, para combater o racismo e o sexismo que ronda, até hoje, cada negra brasileira.

Sueli Carneiro (Foto: Caroline Lima)/ Reprodução: Revista Maria Claire

Ela ampliou não só um debate racial nacional, mas internacional. Junto com Abdias Nascimento e Lélia Gonzalez, e muitas outras mulheres negras que não cabem aqui de tão extensa a lista, Sueli levou para a própria ONU as demandas por inclusão e respeito à diversidade dentre os mais variados temas.

Essa biografia nos dá um prato cheio de nomes do movimento negro e feminista. Bianca Santana nos apresenta possibilidades e representatividade para lutar por um mundo mais igualitário a partir da luta de Sueli. É preciso, ainda, lutar diante de retrocessos, para manutenção de direitos como às políticas de cotas e pelo direito a uma universidade pública, nossa por direito. E isso, como expressa a autora, precisará de organização.

“O agravamento de um racismo cada dia mais explícito e violento vai exigir novas propostas de organização política para o enfrentamento. Sinal mais eloquente dessa acirração são os índices de morte: 63 jovens negros são assassinados no Brasil todos os dias. É uma juventude sob ameaça”.

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Beatriz Saraiva
Lado M
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Estudante de Jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP).