Coração de Tinta, de Cornelia Funke: um livro sobre o poder da leitura

Ana Carolina Müller
Lado M
3 min readMar 28, 2017

--

“Alguns livros devem ser degustados,
Outros são devorados,
Apenas poucos são mastigados
E digeridos totalmente.”

Foi com essas palavras, pregadas na porta do escritório de seu pai, que Meggie aprendeu a ler. Sua paixão pela leitura foi herdada dele. Mas, apesar de compartilharem esse mesmo gosto, ele nunca contava histórias para a filha dormir como normalmente fazem com as crianças. Só alguns anos mais tarde ela descobriria o motivo disso: Mortimer, o “médico de livros”, era também o que chamavam de Língua Encantada, alguém com o dom de trazer para o mundo real habitantes de outros mundos feitos de papel e tinta.

A primeira vez que Coração de Tinta esteve em minhas mãos eu tinha 12 anos, a mesma idade que Meggie. Assim como ela, eu era uma criança apaixonada por livros — o que muitas vezes me trazia a sensação de solidão e incompreensão por parte das outras pessoas. Mas Meggie não sofria com isso, ela vivia com seu pai encadernador numa casa lotada de livros, até que precisaram sair de lá para viver uma aventura cheia de vilões e heróis trazidos à vida por meio da leitura. Na história de Meggie, seus livros eram os protagonistas. Eu entendi que não havia nada de errado com uma criança como eu e, principalmente, que existiam outras pessoas que compartilhavam comigo tal paixão — sendo a primeira delas a própria autora, Cornelia Funke, uma leitora voraz que deixa isso claro em cada capítulo iniciado com um trecho de um livro diferente.

Só quando reli Coração de Tinta, agora aos 21, eu compreendi o quanto essa identificação significou para mim. O livro fala sobre escritores e leitores, sobre a magia existente na contação de histórias. Essa magia realmente acontece na vida de Meggie quando um antigo vilão, retirado de seu livro quando ela era praticamente um bebê, passa a perseguir Mortimer (ou Mo, como ela sempre o chama) por conta de seu dom. Ambos procuram refúgio no casarão da solitária Elinor, uma tia idosa que trata sua biblioteca como uma filha e acaba participando de verdade de uma das aventuras que tanto ama. Juntos, os três são levados até a aldeia de Capricórnio, vilão que Mo leu para fora de uma história de fantasia medieval e que agora pretende conquistar riquezas e poder para permanecer no mundo real.

Apesar de Coração de Tinta ser recomendado para o público infanto-juvenil, Funke parece deixar vários detalhes reservados para a percepção dos adultos e, principalmente, para nós, leitoras. Há muita sutileza nos diálogos entre as protagonistas femininas. A autora dá a Elinor um bonito caminho: uma senhora que vivia sozinha, cercada por seus livros, descobre aos poucos toda a força que tem para ajudar os familiares. Quando, algumas vezes, pensa que não irá conseguir ou que está velha demais para isso, Meggie está lá para dizer o quanto ela é bonita, inteligente e essencial na luta contra Capricórnio.

Presas num lugar cercado por homens saídos de um livro medieval, ambas conseguem sua força e suas ideias a partir das histórias que conhecem e, principalmente, uma na outra. Apesar de terem outros amigos por perto, há coisas que só elas compreendem. Afinal, quantas aventuras são protagonizadas por mulheres? Pensando rapidamente, de quantas heroínas você consegue lembrar? Meggie e sua tia Elinor também fazem as mesmas perguntas. Mas ali não há mocinhas para serem salvas ou mulheres falando de seus heróis. Em Coração de Tinta, as mulheres conversam sobre livros. Todos os heróis da história são apaixonados por livros e essa é a melhor arma que poderiam ter.

Cornelia Funke faz uma bela homenagem a todos os leitores e leitoras, sejam eles crianças ou adultos, que já sonharam em conhecer seus personagens favoritos. Desejar uma “língua encantada” talvez não seja uma boa ideia — afinal, nunca se sabe o que pode sair do livro. Mas Coração de Tinta também fala sobre outro tipo de dom, igualmente difícil de lidar e que requer um sentimento único que só os apaixonados por livros experimentam. Afinal, assim como dissera Mo, “o ofício de escrever histórias tem algo a ver com a magia”.

Originally published at www.siteladom.com.br on March 28, 2017.

--

--