Cora Coralina Todas as Vidas traz a “alma feminina” através da poesia

Luiza
Lado M
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2 min readDec 13, 2017

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Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé
do borralho,
olhando para o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço…
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo…
Vive dentro de mim
a lavadeira
do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde
de São-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada,
sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
-Enxerto de terra,
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha…
tão desprezada,
tão murmurada…
Fingindo ser alegre
seu triste fado.
Todas as vidas
dentro de mim:
Na minha vida –
a vida mera
das obscuras!

(Cora Coralina)

É esse poema que dá nome ao filme Cora Coralina — Todas as Vidas. O documentário do diretor Renato Barbieri intercala fatos e ficção — se é que a poesia autobiográfica da autora pode ser chamada assim.

Os trechos de entrevistas com estudiosos e conhecidos da poetisa são intercalados com a declamação e interpretação de poesia, e o resultado é uma experiência cinematográfica muito interessante.

O filme trata justamente de todas as mulheres que viveram em Cora Coralina. Várias atrizes dão conta de recitar os poemas em que ela conta sua vida em primeira pessoa, desde a infância até a velhice.

Os poemas são conhecidos por refletirem bem a “alma feminina”. Entrei no cinema achando isso uma bela bobagem; o que eu conhecia era uma poesia delicada, fofa, todo o estereótipo que nos esforçamos tanto para desconstruir.

Contudo, saí da sala achando que, se Cora Coralina representa as mulheres, estamos muito bem representadas. Mesmo com todas as limitações de seu tempo — ela nasceu em 1889 e faleceu em 1985 -, Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas conseguiu publicar seu primeiro livro aos 75 anos e hoje é uma das maiores escritoras brasileiras.

Conhecer a história da autora e a realidade que ela retrata em sua obra já é um prazer por si só. O documentário tornou a tarefa ainda mais fácil, optando por uma linguagem simples e imagens do interior, bem à moda de Cora Coralina.

Originally published at www.siteladom.com.br on December 13, 2017.

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Luiza
Lado M

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