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“Cura Gay” é violência: a homossexualidade não é uma doença

Ana Carolina Müller
Lado M
Published in
4 min readSep 19, 2017

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Até 17 de maio de 1990, na Classificação Internacional de Doenças (CID), havia o seguinte código no capítulo de Transtornos Mentais: 302.0 Homossexualismo. No entanto, diante da pressão de grupos minoritários e da comunidade científica, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decidiu retirar o termo da catalogação nesta data, a qual passou a ser, a partir de então, o Dia Internacional Contra a Homofobia.

Nove anos mais tarde, em 22 de março, foi a vez do Conselho Federal de Psicologia (CFP) estabelecer a resolução 001/1999 e reafirmar que as diferentes orientações sexuais são parte da identidade de cada sujeito. Dentre os artigos da resolução, encontra-se a não patologização de comportamentos e práticas homoeróticas, a reflexão sobre qualquer tipo de discriminação, e, principalmente, a atuação do psicólogo contra eventos e serviços que proponham tratamento para estas pessoas.

Mesmo depois de conquistas como essas, membros de partidos conservadores ainda possuem apoio popular para levar adiante projetos como a “Cura Gay”, que reafirma a homossexualidade como perversão, doença mental e, por mais absurdo que possa parecer num Estado laico, afronta à crença cristã da população brasileira. Em função disso, o CFP, que se mantém firme contra qualquer tipo de prática que busque “patologizar”, “tratar” ou “reverter” as diferentes orientações sexuais, vem sendo constantemente atacado com tentativas políticas e jurídicas de permitir que psicólogos possam ignorar a posição do Conselho sem serem punidos por lei.

O que significa patologizar a homossexualidade?

Quando um comportamento é patologizado e chamado de transtorno mental, ele é considerado desviante da norma e, portanto, deve haver uma maneira de garantir que estas pessoas voltem ao “normal”. No entanto, é importante lembrar que, mesmo nos dias atuais, quando pessoas são consideradas doentes mentais, elas não apenas são discriminadas, como também perseguidas e mortas. Assim, nós estamos falando de uma estrutura de poder — e, portanto, de um grupo dominante que, já que não pode punir ninguém em nome de suas crenças pessoais sem responder minimamente à lei, então passa a fazer parte da lei.

Colocar a homossexualidade como transtorno mental garante que a Justiça, as instituições de saúde e a população possam lidar com tais pessoas da mesma maneira como lidam com qualquer indivíduo considerado desviante: excluindo-os, marginalizando-os e controlando-os.

Com a patologização da homossexualidade, a violência direcionada à comunidade LGBT terá novos argumentos absurdos para acontecer: “Ele/ela é maluco(a), é perverso(a), é perigoso(a)”. “Eu estava me protegendo, protegendo minha família”. “Mas olha só, por que você não procura um psicólogo? Nós estamos te dando uma chance de se curar!”.

Polêmicas

Dentro da própria comunidade médica e científica, alguns autores argumentam a necessidade de manter a homossexualidade como um transtorno mental no CID tendo em vista a grande procura de homossexuais por serviços de saúde com demandas específicas. Além desse argumento esconder preconceitos, ele também é bastante equivocado quando pensamos nas diferentes determinantes de saúde na população. Mulheres, por exemplo, também possuem necessidades únicas, o que não torna a condição “ser mulher” uma patologia. Minha classe social ou minha raça também influenciam minha saúde, mas isso não exige um diagnóstico para ser levado em consideração no atendimento.

Além disso, se a população LGBT costuma chegar aos serviços de saúde com queixas específicas desse grupo, isso se dá pelo preconceito, pela violência e pela falta de informação — e não pela genética ou por “doenças gays”, como já foi considerado por muito tempo. A homossexualidade como transtorno mental também é um passo em direção a tratamentos que busquem modificar as práticas sexuais, e não garantir que estas aconteçam de forma saudável. Ou seja, cada vez menos políticas públicas de saúde serão criadas para essa população (por exemplo, voltada para a saúde sexual de mulheres lésbicas) e cada vez mais esquecidas serão as discussões que afetam a sociedade em geral (por exemplo, sobre a proibição de homens que fazem sexo com homens doarem sangue).

A questão não é simples

Acreditar que terapias de reversão sexual são tão absurdas que irão simplesmente existir e que nenhum psicólogo as colocará em prática é ignorar como essa estrutura de poder funciona. Estamos tão acostumados a ignorar a saúde mental e a subjetividade humana que, toda vez que alguma lei conservadora sobre o assunto avança, surgem piadas como “atestado médico para ser gay” ou “comprimido para virar hétero”. Se fosse tão simplista e um exame de sangue comprovasse que não é possível tornar ninguém heterossexual, não seria necessária tanta luta. Não estamos falando de saúde física. Estamos falando de violência, de intolerância, de preconceitos escondidos por trás de decisões tomadas em nome da saúde.

Orientação sexual não é um distúrbio. Identidade de gênero não é perversão. Nossas formas de existir no mundo não são doenças.

Originally published at www.siteladom.com.br on September 19, 2017.

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