Dar à luz na sombra: maternidade em situação de prisão

Lado M
Lado M
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5 min readNov 28, 2015

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“Jovem, de baixa renda, em geral mãe, presa provisória suspeita de crime relacionado ao tráfico de drogas ou contra o patrimônio; e, em menor proporção, condenadas por crimes dessa natureza — este é o perfil da maioria das mulheres em situação prisional no Brasil, inclusive das grávidas e puérperas que estão encarceradas nas unidades femininas”. É assim que começa o relatório do estudo “Dar à luz na sombra”, desenvolvido no IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) com o objetivo de tratar as condições atuais e possibilidades futuras para o exercício da maternidade por mulheres em situação de prisão.

É sabido que o cárcere é um lugar de exclusão social e perpetuação das vulnerabilidades e seletividades praticadas para além de seus muros, especialmente no Brasil. As violações no exercício de direitos são constantes: educação e trabalho não são garantidos a todos as detentas, não há separação de unidades entre presas provisórias e condenadas, faltam condições materiais e normas que padronizem condutas institucionais no sistema prisional e de acesso à justiça. No caso específico de unidades femininas, o quadro é ainda mais grave, destacando-se a violação dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher.

O Brasil tem a quinta maior população carcerária feminina do mundo. De acordo com relatório do Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias) divulgado em novembro deste ano pelo Ministério da Justiça, o número de mulheres presas saiu de 5.601 em 2000 para 37.380 mulheres em 2014, um aumento de 567%. De cada 100 mil brasileiras, 36,4 estão presas.

Ainda assim, poucas unidades possuem estrutura para atender presas gestantes ou que tenham filhos pequenos. Ao todo, 34% das unidades femininas e 6% das mistas têm cela ou dormitório adequado para gestantes. Além disso, somente 32% das unidades femininas e 3% das mistas têm berçário ou centro de referência materno infantil. Para completar, apenas 5% das unidades femininas têm creche. Nas unidades mistas, não há nenhuma.

Os parâmetros legais existem: a Assembleia Geral da ONU aprovou, no final de 2010, as chamadas Regras de Bangkok, um conjunto de regras mínimas para tratamento da mulher presa e medidas não privativas de liberdade para as mulheres em conflito com a lei. Já no Brasil, houve recentemente três importantes modificações legislativas, no sentido de garantir o exercício de maternidade em reclusão: a Lei nº 12.962/14, que regula sobre o convívio entre pais em situação de prisão e suas filhas e filhos, a Lei nº 11.942/09, que assegura às mães reclusas e aos recém-nascidos condições mínimas de assistência exercício da maternidade, e a Lei nº 12.403/11, que estendeu às gestantes e mães o direito à prisão domiciliar em substituição à prisão preventiva.

A lei brasileira pode ser unificada, mas existem maneiras diversas de se exercer a maternidade no cárcere. Na realidade, mesmo havendo diferenças importantes entre as unidades prisionais brasileiras — sendo umas mais garantidoras de direitos, melhor equipadas e mais bem estruturadas para atender as necessidades de gestantes e mães do que outras –, fato é que nenhuma funciona completamente de acordo com as previsões legais.

Antes de mais nada, é estabelecido que o parto deve acontecer num hospital; normalmente, o próprio hospital penitenciário ou, na ausência deste, em outro hospital público que seja conveniado com o presídio. Mesmo já tendo condições melhores que as tantas que dão à luz no cárcere, muitas mulheres sofrem maus tratos durante o parto, não sendo incomum que ele se dê com elas ainda algemadas — o que só é proibido por lei desde 2012, mesmo sendo uma clara violação de direitos humanos. “Se para as mulheres em liberdade o parto já não acontece da forma como gostariam, imagine para aquelas em situação de cárcere?”, reflete Bruna Angotti, antropóloga e advogada que coordenou, junto com a criminóloga Ana Gabriela Braga, a pesquisa“Dar à luz na sombra”.

Além disso, existe na lei brasileira a Resolução nº 3 do Conselho de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) de 15 de julho de 2009, que disciplina a situação de filhas e filhos de mulheres presas e estabelece o prazo de um ano e seis meses como o mínimo para que as crianças permaneçam com as mães. Novamente, a regra existe, mas não corresponde à realidade: na maioria das instituições, os filhos ficam com as mães por, no máximo, seis meses, sendo então encaminhados para parentes próximos — na melhor das hipóteses.

Quando a família não é localizada ou não aceita a custódia da criança, ela acaba indo para um abrigo público temporariamente. Em uma série de casos, o que sucede é que a mãe, por estar presa, não consegue comparecer à audiência de destituição familiar, perdendo, assim, o filho para a adoção. “A ruptura com a mãe tem efeitos psicológicos perversos, mesmo em bebês muito pequenos”, diz a antropóloga.

O aprisionamento feminino traz à tona uma questão básica que, ao mesmo tempo em que deveria ser preocupação central das gestoras do sistema prisional, acaba, na prática, sendo quase que totalmente ignorada: a população invisível que habita esse sistema, as filhas e filhos de presas que sofrem com as condições precárias das prisões brasileiras. Bruna relata que, no decorrer do estudo, conheceu crianças que, por falta de contato com o mundo exterior ao cárcere, tinham medo de carros e até de homens. Uma delas, vivendo com a mãe na prisão até idade avançada, nunca havia visto as estrelas, uma vez que só podia sair no páteo durante o dia.

Se a sobrevivência, com dignidade, de uma criança depende de alimentação, cuidados, assistência material e afetiva, é necessário sair do papel. “Implementar políticas que tratem da permanência do bebê com a mãe, que privilegiem o desencarceramento e, em casos de manutenção da prisão, que esta convivência se dê em ambiente confortável e salubre para ambas as partes, com recursos e suporte para a garantia dos direitos dessas mulheres e crianças”, conclui-se no relatório da pesquisa. Assim, quem sabe, a sombra sob a qual vivem essas pessoas possa começar a se recolher.

Originally published at www.siteladom.com.br on November 28, 2015.

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