De Mayer a Spacey, o poder já não é um escudo infalível para abusadores

Helena Vitorino
Lado M
6 min readNov 6, 2017

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“Homem” e “Poder”: será que essas duas palavras ainda servem como sinônimos de absolvição e impunidade, quando o assunto é assédio sexual no ambiente de trabalho? É possível que esta lógica esteja se alterando, ainda que aos poucos.

Mesmo respaldados pela carreira e reputação que tenham construído em vida, os agressores sexual na atualidade lidam com dois fatores novos: a exposição de seus crimes na mídia, de forma conclusivamente negativa e desgastante, e o peso de seus nomes e suas carreiras agindo contra sua proteção, e não a favor dela. Zé Mayer, Harvey Weinstein e Kevin Spacey — homens, brancos, mais de 50 anos e reputação até pouco tempo inquestionável — veem agora suas trajetórias se desmanchando em frente às câmeras. E o motivo é um só: abuso sexual no trabalho.

O poder como um escudo

Quanto maior o poder sobre o ambiente, sobre a situação e sobre as pessoas, maior a convicção do agressor de que quaisquer denúncias que possam surgir sobre seu comportamento serão ignoradas, abafadas ou minimamente descreditadas. E a confiança de que seu poder sobre os outros falará mais alto em casos de acusações não é totalmente vã: muitas empresas renomadas buscam o abafamento de escândalos em favor do agressor quando o assunto é assédio sexual, e quanto mais poderoso ele for, mais chances de se safar da cadeia, de um processo ou até mesmo do escárnio público.

No entanto, os casos de Zé Mayer, Harvey Weinstein e Kevin Spacey são apenas três exemplos famosos de uma mudança social importantíssima para a luta contra o assédio e abuso sexual no trabalho: o nome, poder e influência do agressor não representam mais um escudo de proteção contra seu comportamento repulsivo. Ao contrário disso, atuam como um peso quando as denúncias vêm à tona, fazendo-os afundar cada vez mais no desprezo social.

Mayer, Weinstein e Spacey

As situações vividas pelas vítimas de Mayer, Weinstein e Spacey não são exclusividade do mundo artístico. O assédio sexual no ambiente de trabalho é uma constante enfrentada por homens e mulheres, e é geralmente praticado por alguém que, dentro da empresa ou corporação, tenha um cargo de superioridade. Na estrutura de poder dentro da empresa, o agressor usa de sua superioridade e poder de influência sobre a vítima para constrangê-la diante da situação. Em alguns casos, a ameaça pode ser implícita, quando apenas o nome do agressor já causa pavor na vítima para que possa pensar em denunciá-lo. Foi o caso do ator Zé Mayer com a figurinista Su Tonani, que o acusou de assédio sexual nos bastidores de uma novela para da Rede Globo.

Zé Mayer

Não é preciso dizer que antes mesmo de Su Tonani nascer, Zé Mayer já era considerado um galã da televisão brasileira. Sua fama de ator respeitável não se limitava à emissora em que despontou, mas era conhecida internacionalmente por seus papéis de renome e sua capacidade artística. Em suma, o nome “Zé Mayer” já trazia consigo um grande peso que poderia atuar contra qualquer pessoa que o denunciasse por assédio — e que inclusive atuou. A denúncia de Su Tonani foi retirada do Jornal Folha de São Paulo pouco depois de publicada, por conta do nome que carregava e do grave conteúdo das acusações.

Harvey Weinstein

No caso de Harvey Weinstein, um dos mais famosos e poderosos produtores de Hollywood, ameaças reais eram feitas às suas vítimas caso não colaborassem com o estupro, e a maioria delas envolvia a carreira artística. As mulheres que o denunciaram, no entanto, ainda não haviam se tornado nas atrizes que conhecemos hoje. Gwyneth Paltrow não era a renomada atriz vencedora de Oscar. Angelina Jolie não era um dos nomes mais respeitados de Hollywood. Lea Seydoux não era conhecida por ser uma das atrizes francesas mais cobiçadas por Hollywood.

Na época dos fatos, todas elas (e as demais vítimas também) eram apenas jovens batalhando incansavelmente para conseguirem interpretar papeis no cinema, a maioria com pouca ou nenhuma experiência em Hollywood, tentando uma vaga em algum filme. Harvey, o produtor, se colocava como a única possibilidade de obterem um papel. Usando seu poder e influência, ele ameaçava às que recusavam suas investidas, garantindo que elas não teriam mais nenhum apoio no meio artístico e que suas carreiras acabariam naquele mesmo momento. Este foi o relato de pelo menos 50 mulheres, entre elas a vencedora do Oscar Lupita Nyong’o.

Kevin Spacey

Já o ator Kevin Spacey, respeitadíssimo por obras como Beleza Americana e pelo destaque na série House of Cards foi acusado de investir sexualmente contra um garoto de 14 anos, o ator Anthony Rapp. Após a denúncia, oito pessoas da equipe de trabalho atual de Spacey também relataram assédio e comportamento inapropriado. E a resposta do ator às denúncias foram tão desconexas e autoconfiantes quanto se poderia prever. Ele conseguiu dizer que não se lembrava do que havia feito a Anthony, mas que se o fizera, é porque é estava bêbado, e que apesar de tudo isso, levava a vida como um homem gay — declaração que prestou um grande desserviço à comunidade LGBT.

Como derrubar poderosos

Como quebrar a confiança de alguém que está tão convicto de sua impunidade? Para as vítimas dos casos citados, denunciar pessoas de influência em seu ambiente de trabalho foi um esforço redobrado. Isso porque a indústria, historicamente composta por homens, se apoia e se defende mutuamente. Os homens de poder não temem perder sua carreira, reputação e empregos porque confiam categoricamente que um outro homem, possivelmente branco e conservador como ele, se encarregará de abafar a denúncia e resolver a situação.

A mudança dos tempos, no entanto, vem destruindo essa sequência de poder que por séculos cala e aprisiona vítimas de violência sexual no trabalho. Parte disso está nos meios de comunicação, que diluem poderes constituídos ao concederem plataformas de voz a quem não pode recorrer aos meios tradicionais. No entanto, grande parte disso também está associada à exigência de poder igualitário para mulheres, em todos os ambientes profissionais, especialmente nos cargos de liderança.

Quando uma estagiária denuncia seu chefe à diretoria da empresa, ela precisa confiar que a denúncia será recebida por um comitê que esteja apto a avaliar a situação sem conflito de interesses. E esta denúncia precisa ser recebida, avaliada e guiada por mulheres de poder.

Isso não implica dizer que homens são incapazes de gerenciar casos de assédio e abuso sexual, e que estarão sempre se protegendo. Também não quer dizer que toda mulher tem condição de proteger outra mulher. Porém, foi apenas muito recentemente que os canais de denúncia de assédio sexual das empresas passaram a existir, e sua época de criação converge com o momento de ascensão de mulheres a cargos de liderança. É possível dizer que a equidade de gênero nos cargos de gerência, superintendência e diretoria traz mudanças estruturais nas empresas, transformações diretamente associadas ao bem estar das empregadas e colaboradoras daquele ambiente. Sendo assim, para quebrar a autoconfiança de abusadores e assediadores numa impunidade cega, é preciso empoderar mulheres para que elas defendam outras mulheres.

Precisamos ter apoio para denunciar

É preciso facilitar o acesso às plataformas de denúncia para que todas as vítimas de assédio sexual tenham crédito em suas acusações. As vítimas de Weinstein só foram ouvidas, muito provavelmente, porque dentre as 50 mulheres há atrizes de renome. Talvez ninguém tivesse ouvido as jovens Angelina e Gwyneth nos anos 1990, quando eram apenas aspirantes a grandes carreiras. Talvez ninguém houvesse dado atenção à Su Tonani se seu relato não fosse publicado pela Folha de São Paulo, e se outras atrizes renomadas também não tivessem confirmado que o comportamento de Zé Mayer era realmente asqueroso. E o ator Kevin Spacey poderia nunca ter sido questionado sobre suas investidas sexuais se o denunciante não fosse um ator de Star Treck.

Todas as vítimas apresentavam algo para validar sua denúncia, como a vasta carreira que hoje em dia ostentam, ou o jornal famoso que publicou as denúncias. Porém, seus relatos, por si só, talvez não servissem para botar três agressores sexuais na cadeia. E é por isso que precisamos falar, incansavelmente, sobre não descreditar vítimas de abuso sexual. Ter que provar, comprovar e atestar que um abuso foi cometido contra você é uma violência psicológica. E é preciso lembrar ainda daquelas que nunca conheceremos os nomes, mas que passaram pela mesma experiência e que não tiveram a merecida atenção no momento de sua denúncia.

É possível que os números de Weinstein, Spacey e Mayer sejam muito, muito maiores, e que o medo do poder e da influência deles tenham-nas calado. E por todos estes motivos, com a ajuda das redes, mídias e das mulheres nos cargos de poder, é que devemos confiar cada vez mais: o poder e influência não mais servirão de proteção para o abuso. Chegou a hora de falar e de agir.

Originally published at www.siteladom.com.br on November 6, 2017.

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