Dear White People: a série necessária para negros e brancos

Helena Vitorino
Lado M
Published in
9 min readMay 5, 2017

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Dear White People foi pensada a partir de um filme de mesmo nome, primeira produção do diretor Justin Simien. O sucesso do filme foi tão grande que a Netflix o convidou para criar uma série que funcionasse como uma continuação da história. No enredo inicial, a universidade de Winchester é fortemente abalada depois que uma festa com temática racista atrai dezenas de alunos brancos com a proposta de “libertarem seu negro interior”. A festa desperta a fúria dos alunos negros, que, ao verem seus colegas rindo e dançando com as caras pintadas de marrom, decidem fazer revolução. Mas o desenrolar da série mostra algo muito mais profundo e vergonhoso do que o bando de alunos brancos fazendo black-face e vestindo perucas blackpower: o racismo está entranhado em cada parede de Ivy League College, e expor aos alunos e professores brancos o privilégio que desfrutam diariamente não será a tarefa mais fácil da vida dos ativistas estudantis de Winchester.

* Spoilers *

Sam White é a corajosa estudante de cinema da Ivy League College que, com seu programa de rádio também chamado Dear White People ironiza diariamente comportamentos sutis e racistas para denunciar a discriminação velada dentro do Campus. Junto de seus dois amigos Reggie e Joelle, Sam encabeça o que entendemos ser a “ala radical” do movimento negro estudantil, ou os “Woke AF” (Negros Despertos): com seus megafones, panfletos e protestos inflexíveis, exigem que medidas sejam tomadas contra os casos de racismo que a faculdade insiste em ignorar.

Do outro lado da luta está a “ala moderada” do movimento negro, que Sam e seus amigos denominam de “Not-Woke AF”(Negros Não-Despertos): liderada por Troy Fairbanks, o diplomático garanhão aspirante a presidente do Conselho Estudantil, e sua namorada Coco Conners, a jovem ambiciosa que acredita mais no poder da influencia do que no confronto direto (e que é talvez a personagem mais interessante de toda a série). No meio de toda a briga está Lionel Higgins, o jornalista tímido e recém-descoberto homossexual, tentando encontrar seu papel na luta. Lionel é o mais radical dos moderados, e o mais moderado dos radicais; serve de ponto de equilíbrio para que o movimento insurgente não se perca em meio aos gritos e discordâncias.

Quem pensa que Dear White People é um guia de bom-comportamento para que pessoas brancas não sejam racistas reféns da “ingenuidade” talvez se decepcione um pouco ao perceber que, ao contrário do título, o público alvo da série é a população negra. Em especial, o movimento negro, e mais especialmente ainda, os movimentos negros que se chocam dentro de suas intersecções e segmentações. Sam, Reggi e Joelle, Troy Coco e Lionel representam os extremos e complementares pares de uma insurgência adormecida. Assim como o racismo não se deixou de existir depois da extinção das Leis de Jim Crow e do Apartheid, da mesma forma o movimento negro não se encerrou com a morte de Martin Luther King e Rosa Parks. Ele estava apenas adormecido.

Elencamos 10 abordagens necessárias que a série representou de forma fantástica e que estão presentes no ativismo negro atual e que precisam ser discutidas com responsabilidade.

Relacionamento Interracial

Sam White é a enérgica heroína errante: ao usar seu programa de rádio para denunciar o insolente e velado discurso racista dentro das paredes da Universidade e questionar a maioria branca universitária sobre seu comportamento discriminatório, se vê ao mesmo tempo encurralada entre seus amigos ativistas e si própria quando se descobre apaixonada e envolvida por Gabe, um ativista bem intencionado, hipster, e branco. Ao se descobrir emocionalmente envolvida com Gabe, Sam passa a questionar sua própria luta (é possível seguir no movimento estando apaixonada pelo seu opressor?), e passa a conviver com os olhares e comentários desconfiados de seus amigos e risadas de seus inimigos.

Sam passa a ser questionada pelos amigos, que prefeririam vê-la com Reggie, seu fiel companheiro de lutas, que além de sensível, ativista e negro, é fascinado por ela. A jovem se questiona se é possível forçar uma relação que não existe com Reggie, simplesmente por parecer o certo a fazer, ao mesmo tempo em que se pergunta se vale a pena investir em Gabe, sabendo que como branco, ele tem muito ainda a se desconstruir.

Pelos episódios é possível acompanhar a guerra silenciosa travada entre Sam e Coco: a principal arma é o cabelo. Ao entrar no movimento, Sam assume o cabelo natural e abandona o alisamento, criticando ferrenhamente a insegurança com o físico e a estética do povo negro como estrutura de poder do opressor. Coco segue na direção contrária, cansada de ser discriminada pelo seu crespo alisado, toma a decisão radical de investir um dinheiro absurdo nas extensões (perucas), para ter o tão sonhado liso natural. O cabelo é uma representação do empoderamento feminino negro, pois envolve questões de identidade, autoestima e segurança, e durante toda a série o embate entre Sam e Coco perpassa o poder dos fios e o que eles representam.

Você é negro o suficiente?

Uma constante no seriado, que também é real dentro dos movimentos negros, é a intersecção entre os chamados negros de pele clara e os negros de pele escura ou retinta. O confronto recai sobre Sam, que, apesar de ser a líder radical, tem pele mais clara que demais alunos do movimento, além de fatídicos olhos verdes; por estes aspectos físicos, não experimenta da mesma exclusão social que suas colegas Coco e Joelle, negras de pele escura, e cabelos bem crespos. A série dá uma incrível noção sobre como o comportamento de Coco, que busca a qualquer custo se assemelhar ao requinte de mulheres brancas, está relacionado com a rejeição social tão cruel destinada às mulheres de pele mais escura. Esta questão, que não faz parte do universo de Sam, fará com que a jovem se questione sobre quais privilégios ela desfruta e que são restritos a Coco.

Coco Conners representa a minoria mais escura da Universidade, e como não é novidade, vive na pele a rejeição afetiva dos colegas com que convive. O reflexo disso recai sobre sua aparência e seu psicológico: a jovem refuta seu nome, Colandrea, por considera-lo “negro demais”, e prefere ser chamada de “Coco”. Busca a todo custo retocar e modelar sua aparência, como se tivesse algum tipo de “defasagem” estética em referência às mulheres brancas que precisasse, de qualquer forma, corrigir. O questionamento que fica bem claro sobre esta personagem é: estamos cientes da dimensão do estrago que a rejeição afetiva causa nas mulheres de pele mais escura, ao ponto de que elas desejem a todo custo alterarem quem são e o que são, para se sentirem mais próximas do que é tido como “aceitável para namorar”? Nas palavras da própria Coco, “ser uma ativista [para Sam] é fácil”. Com sua pele clara, seus olhos verdes e cabelo cacheado, ela sequer vai experimentar a rejeição brutal dos homens brancos e negros, ou pior, sequer vai ouvir as bizarrices do tipo “eu nunca fiquei com uma negra como você”.

O recorte é não é só racial, e mas também sexual

Lionel Higgins é o contrapeso essencial que “Dear White People” traz para um debate muito necessário: dentro do movimento negro: os homens gays ainda encontram grande desamparo e falta de representatividade. Parte disso está na associação automática do estereótipo de homem negro com os fortes, viris e másculos Troy Fairbanks e Reggie. Os dois jovens, que representam partes opostas de um mesmo movimento, nada têm a ver com o frágil, esquisito e nerd Lionel, que ao longo da série descobre que o ativismo negro ainda precisa avançar muito na discussão de gênero. O jornalista sofre o racismo usual da faculdade por ser negro, e a discriminação velada dentro do movimento por ser gay. Lutando contra duas forças de peso, Lionel tem em suas mãos a responsabilidade de escrever sobre o que de fato acontece na universidade, ao mesmo tempo em que descobre sua própria sexualidade e supera sua timidez.

Estereótipos Indigestos do “Homem Negro”

A série expõe brilhantemente em Troy Fairbanks e Reggie Green, duas personagens antagônicas, os clássicos estereótipos de homens negros dentro da concepção restritiva racista. Troy é o que todos conhecemos como “Black Friend” dos filmes da sessão da tarde, o engraçadão e carismático que se dá bem com todo mundo, e que mais se assemelha ao que os brancos cunharam de “preto doméstico”. É filho do reitor da faculdade e exprime tudo que a sociedade espera de um negro de sucesso — boas notas, boa apresentação, boa fala, bom comportamento, e um sorriso no rosto. No seriado, Troy é comparado ao “Barack Obama de Winchester”, pois todos simplesmente se rendem a seu carisma. Reggie Green é tão carismático e sensível quanto Troy, mas reage com mais veemência quando é provocado. Sua ira contra o racismo é tida por seus colegas brancos como um comportamento do “negro rebelde”, outro clássico estereótipo associado aos negros, com forte apelo ao encarceramento em massa da população negra. Reggie e Troy, embora muito diferentes, se descobrem idênticos em dado momento da série, e percebem apesar de serem muito diferentes, para um policial parado em sua frente eles são a mesma coisa: um negro perigoso.

Personagens colaterais incríveis

Fora do círculo central da trama, personagens colaterais dão um toque incrivelmente especial à discussão sobre o racismo. Entre eles temos Rashid Bakr, um jovem africano intercambista que oferece uma perspectiva sobre o racismo do ponto de vista de fora dos Estados Unidos. A presença de Rashid serve para demonstrar como o racismo é interpretado em outra cultura, a África, que é o berço de todo negro que habita o continente americano. Kelsey é uma patricinha ingênua, alheia às graves consequências que o racismo brutal na faculdade pode imprimir na comunidade. Sua personagem representa a população alienada em questões banais, que desmerecem a luta e que transformam assuntos sérios em discussões infantis. Dentre os personagens colaterais brancos, temos Kurt Fletcher, o filho do presidente da faculdade que considera o ativismo racial um grande “mimimi de quem ainda não superou a escravidão”. A forma como desmerece os movimentos negros estudantis é fiel ao comportamento de grande parte da sociedade diante de insurgências grandes, como o Black Lives Matter. Kurt representa os brancos que, ao contrário de assumirem seu racismo, preferem dizer que o “racismo está nos olhos de quem vê”, culpabilizando assim os próprios negros pelo que sofrem.

A faculdade de Winchester fica estarrecida com o incidente da morte de um jovem branco que, embriagado, se jogou de uma janela tentando voar. O acontecimento tem uma reação na faculdade que beira o ridículo: logo após sua morte, o jovem é recordado como um herói, um mártir; cartazes são espalhados em sua memória, e uma passeata é organizada em sua homenagem. Mas a faculdade parece nem perceber incidentes mais complexos, como a batida policial que quase matou Reggie, com abordagem claramente racista. A série demonstra como acontecimentos podem ser distorcidos em virtude do racismo, amenizando situações absurdas e cruéis. É possível ver que enquanto Reggie é culpabilizado pela massacrante abordagem policial, como se ele a houvesse provocado, ninguém parece lembrar que o mártir que se lançou da janela havia de fato provocado sua própria morte.

O movimento não está pronto: nós estamos criando o movimento

Uma proposta interessante da série é não atribuir um caráter heroico e perfeito nenhum movimento, equalizando todos os envolvidos numa grande comunidade homogênea que está descobrindo uma luta. A série não tem intenção de dizer que os negros tem a solução para o racismo e para os racistas, pelo contrário; Dear White People é uma série que aborda com honestidade o fato de que o movimento negro também não é perfeito e está sendo uma descoberta para a maioria dos jovens negros atuais. Sam White é a heroína que também tem medos, tem defeitos e que também erra ao ser radical demais e não enxergar os que estão ao seu lado. O caráter humano que a série confere em todos seus personagens vem da proposta inicial do diretor e roteirista, que não quis fazer uma obra sobre luta de raças, mas sobre descoberta de identidades.

Você pode reproduzir o racismo sem se dar conta

Esta série não é indicada caso você, branco ou branca, ainda não esteja bem resolvido sobre os privilégios sociais e culturais que desfruta, e que são restritos a você pela sua etnia. Se você ainda não está preparado para encarar os conceitos de “racismo estrutural”, genocídio do povo negro”, “apropriação cultural”, “” e solidão da mulher negra”, e assumir que estes conceitos se constroem sob a histórica e tão atual desvantagem de brancos sobre negros nas sociedades, talvez esta série não seja para você. Cara pessoa branca, ainda que você não perceba o racismo no seu comportamento, ele pode estar lá e em algum momento vai se manifestar. Mesmo contra sua vontade, ou até mesmo num gesto ou numa frase que você não considera racista, lá está ele: o velho e deteriorado preconceito, que se renova e ganha forma cada vez que alguém tenta disfarça-lo, ou alegar que o racismo está no próprio negro. Essa série é um grande tapa na cara para todos nós, porque expõe as abertamente as feridas sociais, muito maiores e mais gangrenadas do que podemos imaginar. Sam, Troy, Coco, Reggie e Lionel são o caldo cultural do que a sociedade vem imprimindo nos jovens ao longo das gerações, e principalmente, são a resposta enérgica que todos nós esperamos para lutar por justiça racial.

Originally published at www.siteladom.com.br on May 5, 2017.

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