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Deixem meus mamilos em paz: pelo direito de não usar sutiã

Ana Carolina Müller
Lado M
Published in
4 min readMar 15, 2017

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Imagine só: você acorda pela manhã, toma um banho e precisa escolher o que vestir. Essa decisão automaticamente inclui o sutiã — junto com todas as suas regras não escritas. Se a roupa é clara, ele também precisa ser, porque ninguém admite enxergar sua roupa íntima através do tecido. Se a alça está à mostra, precisa combinar, precisa ser discreto. Na prática, esses pensamentos não tomam muito tempo, já que você incorporou a ideia de usar sutiã até mesmo antes da sensação de ter seios. Você sai de casa, enfrenta o transporte e o caos da cidade, chega ao trabalho, cumprimenta os colegas. Eis, então, que ela aparece: a moça que trabalha com você, tem uma rotina muito parecida com a sua, mas que, ao vestir uma blusa pela manhã, claramente não viu o menor problema em não adicionar nenhuma peça extra por baixo. Todo mundo percebe e encara por alguns segundos (e, provavelmente, ainda que numa reação automática, você também).

Desculpe pelas imagens chocantes demais, mas é assim que são seios de verdade. Eles não ficam sempre no lugar, ali no alto, juntinhos e redondos. Aliás, mulheres também têm mamilos, e às vezes, por diversas razões, eles crescem e endurecem, obrigando outras pessoas ao redor a lembrar de sua existência. Mas você já sabia disso. Eu já sabia disso. Então, por que ainda causa tanto incômodo?

Mamilos são polêmicos

Eu aprendi cedo a lição. Meus seios deveriam ficar firmes dentro do sutiã, senão eles iriam cair e ficar feios quando eu fosse mais velha. Não é bom usar muito decote porque isso é coisa de puta. Evite roupas íntimas da cor bege. Bege é brochante, né? Mas também não pode usar uma cor muito chamativa porque isso também é coisa de puta. E o mais importante: ninguém pode lembrar que tenho mamilos. O sutiã esconde meus mamilos enquanto eu escondo o sutiã. Farol aceso jamais.

De repente, temos todo um manual de instrução para uma parte do nosso corpo cujo objetivo primário é servir de nutrição a outros seres vivos, mas que, na verdade, é censurada e diretamente relacionada às fantasias sexuais masculinas.

Aqui vai um exemplo prático: alguns anos atrás, uma garota da minha escola teve uma foto nua vazada na internet. Ouvi diversos comentários de meninos sobre como “o peito dela era feio”. É claro que eu sabia que existem diversos tipos de seios e formatos de mamilos, mas não me passava pela cabeça que alguns eram feios e outros bonitos. E estou falando aqui de algo que se refere às mulheres, é claro — ou você já ouviu algum comentário sobre o mamilo de um homem que sai andando sem camiseta por aí? A grande questão desse episódio não foi perceber a existência de um padrão de beleza para os seios femininos, mas sim que, seja lá qual for a categoria, eu também fazia parte dela. Não deve ser surpreendente, então, a quantidade de horas que passei em frente ao espelho tentando descobrir se meus mamilos passariam no teste de qualidade.

Eu passei anos comprando sutiãs com bojo, armações, rendas e todo tipo de acessório destinado a criar uma imagem ali que não é real. Nós convivemos umas com as outras nessa lógica e estamos acostumadas com ela. Convivemos com familiares, amigos, colegas de escola e trabalho que afirmam e nos fazem reafirmar que não é aceitável aparecer em público com os “faróis acesos”. De fato, eu me acostumei tanto que, durante uma época da minha vida, chegava a dormir com sutiã simplesmente porque não sabia lidar com a imagem que via no espelho quando ele estava ausente. Eu comecei a acreditar nessa mentira.

Felizmente, como eu aprendi algum tempo depois, o feminismo é um processo delicado e praticamente inacabável. Um questionamento sempre leva a outro e mais outro. Eu compreendi a existência de um padrão para então perceber que não precisava me encaixar nele. Assim, com cada vez mais força, surgia uma nova pergunta. Se não tem nada de errado com meus seios, por que eles precisam ficar escondidos?

Mas essa decisão de me libertar das amarras e compreender que, sim, meus mamilos estão ali, é igualmente um processo. Em alguns dias você se sente muito bem com uma roupa leve que mostra tudo que seu corpo tem de mais bonito e natural; no outro dia, mesmo com o corpo escondido por baixo de vários tecidos, parece que só é possível listar tudo o que há de errado com ele. Não há nenhum problema nisso — vamos desatando um nó de cada vez. E digo “vamos” porque este é um longo caminho a ser feito em conjunto, um caminho que é não apenas sobre compreender aquilo que nos priva de nossa liberdade individual, mas, principalmente, sobre respeitar a escolha de cada mulher. Permitir a nós mesmas fazermos escolhas únicas sobre o que será feito de nosso corpo.

Talvez você esteja lendo isso e se sinta maravilhosa com seu sutiã. Talvez não aguente mais as tentativas de outras mulheres de promover marchas e eventos para chocar o restante da sociedade com os mamilos à mostra. E tudo bem. Tudo bem porque nossa luta pelo direito ao nosso corpo não é sobre ditar regras de conduta, mas sim de permitir que todas as mulheres se aceitem e aceitem as outras da forma como cada uma quiser ser — assim como existem diversas formas de ser e entender nossos corpos, não apenas aquela hiperssexualizada e culpabilizadora com a qual estamos acostumadas.

Originally published at www.siteladom.com.br on March 15, 2017.

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