Desmistificando o que é assexualidade

Luiza
Lado M
Published in
5 min readNov 19, 2015

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Os efeitos do feminismo na libertação sexual são notáveis: cada vez mais, se rejeita a noção de que a “mulher direita” não faz sexo antes do casamento. Quando ousa fazer, não mais esconde como se a sua vida dependesse disso, e também faz questão de se preocupar com o seu próprio prazer. Com o feminismo, nos permitimos ficar mais à vontade para falar sobre sexo. Afinal, querer sexo é a coisa mais natural do mundo, não é mesmo? Todo mundo vai passar por isso um dia, certo? Mais ou menos. Todo mundo, menos as pessoas que não vão: os assexuais.

O que é assexualidade?

A assexualidade se caracteriza pela ausência de interesse por sexo. Uma comparação comum e muito explicativa usada em grupos online sobre o assunto é que, ao invés de fazer sexo, eles preferem comer bolo.

Por muito tempo, considerou-se que a ausência de desejo sexual era uma doença. Até hoje, há quem pense assim — e muitas dessas pessoas são profissionais da área de saúde. Esse pensamento é muito prejudicial à comunidade assexual: até encontrar as comunidades online, a grande maioria acredita que, de fato, sua falta de interesse indica algo errado em sua personalidade.

A experiência de identificação como assexual é muito semelhante em todos os entrevistados: ainda na escola, a criança percebe que é diferente de seus amigos. Enquanto eles abandonam suas brincadeiras e passam a se interessar por relacionamentos amorosos e sexuais, ela não vê sentido naquilo. É aí que começam as especulações sobre o motivo da diferença.

Os entrevistados contam que se agarraram às mais diversas justificativas para essa sua característica: a grande maioria pensou, num primeiro momento, que poderia ser homossexual. Outros acreditaram que se tratava de imaturidade, e que eventualmente sentiriam isso que todo mundo começava a sentir durante a adolescência. R., que preferiu não se identificar, conta que chegou a considerar o autismo como uma possível explicação para sua falta de interesse.

Dividir sua inquietação com as pessoas ao seu redor também não os ajudou: a reação de parentes e amigos é, quase invariavelmente, “Você ainda não encontrou a pessoa certa”. No caso das mulheres, ainda se usa a explicação de que é normal, mulheres não se interessam tanto assim por sexo(!). Só depois de encontrar pessoas semelhantes na internet vem o alívio pela simples descoberta de que se é normal. Mas, até lá, o caminho pode ser tortuoso. Felipe Galvão relembra sua experiência: “Apesar da minha repulsa por sexo, cheguei a realizar o ato algumas vezes por achar que era falta de costume, já que tinha pouca informação. Mas todas as vezes que fiz foram um sacrifício físico e psicológico.”

Tentar entender os motivos que levaram uma pessoa a se identificar como assexual é um esforço em vão; não se trata de uma escolha, mas de mais um aspecto da sexualidade. K., que também preferiu não se identificar, sofreu um abuso durante a infância e hoje se identifica como assexual. Ela se incomoda profundamente quando pessoas (inclusive pesquisadores) alegam que algumas pessoas se escondem atrás da assexualidade por não conseguirem lidar com o trauma ligado a relações sexuais. “Se esconder não é confortável para ninguém!”, ela afirma. “A violência passou, a cicatriz ficará para resto da vida, mas a partir do momento em que me reconstituí como pessoa e estou inserida em um contexto social, tenho o direito de ser quem eu quiser, independente de pesquisas”.

Um dos maiores problemas enfrentados pelos assexuais são as expectativas sociais colocadas sobre eles. Para Elisabete Regina de Oliveira, autora da principal tese sobre assexualidade no Brasil, os estudos sobre sexualidade (e, consequentemente, todas as informações propagadas sobre o assunto) estão baseados em 4 pressupostos: a ideia de que todos desejam sexo, a de que todos buscam relacionamentos amorosos, a legitimação da relação amorosa apenas através do sexo e a centralidade das relações afetivo-sexuais na experiência humana. Ela descreve esses pressupostos como sexo-normativos: “Essas normas estabelecem o que é normal em termos de sexualidade e, portanto, a assexualidade está fora desse padrão”.

A assexualidade também não é uniforme: dentro da comunidade, há diferentes formas de viver a mesma experiência. Há os assexuais arromânticos, que não procuram relacionamentos amorosos, e os românticos, que têm interesse nessas relações. Dentre os românticos, há mais diversidade ainda: existem heterorromânticos (que sentem atração romântica por pessoas que não são do seu gênero), homorromânticos (que sentem atração romântica por pessoas do seu gênero), birromânticos (que sentem atração romântica por pessoas de ambos os gêneros), demirromânticos (que só sentem atração romântica depois de um vínculo emocional), entre outros. Vale lembrar que esses termos também se aplicam às pessoas alossexuais românticas (ou seja, que não são assexuais e têm interesse em relacionamentos amorosos).

Assexual também não é qualquer pessoa que não faz sexo. Há, inclusive, muitos assexuais que transam! A chave está na diferença entre celibato e assexualidade. Assexualidade é a ausência de interesse por sexo, enquanto celibato é a abstinência, mesmo que haja interesse — por exemplo, quando pessoas escolhem não fazer sexo por motivos religiosos. Dessa forma, existem assexuais celibatários e não celibatários. Muitos motivos podem levar uma pessoa assexual a ter relações sexuais, por exemplo, o desejo de agradar outra pessoa ou de gerar filhos. Essas pessoas podem sofrer discriminação mesmo dentro da comunidade assexual. Segundo Jackson Silva, “elas sofrem muito preconceito porque se sentem isoladas no meio da comunidade e não se sentem íntegras na sociedade que valoriza muito o sexo”.

Há quem argumente — inclusive dentro da comunidade assexual — que não há necessidade para tantas classificações e rótulos. Existe, contudo, um grande alívio em poder fazer parte de um grupo que se identifica com suas próprias singularidades, especialmente se ninguém ao seu redor o faz. Camila Lima considera as comunidades online uma ferramenta fundamental nesse sentido: “As chances de dois assexuais se encontrarem sem ajuda da internet são muito poucas. Mesmo que morem no mesmo bairro, não é algo que as pessoas saem falando”.

Esse “apagamento” social é, possivelmente, a maior violência que o grupo sofre. Afinal, fora da internet (e grupos específicos dentro dela), quase não se fala sobre o assunto. Contudo, essa violência causa polêmicas dentre os assexuais — há quem considere que é, sim, uma opressão e uma forma de combatê-la seria integrar-se ao movimento LGBT. Há, também, pessoas que acreditam que essa integração não tem motivos, afinal, a violência contra grupos LGBT é explícita e, muitas vezes, física. R., que preferiu não se identificar, afirma: “Não vejo gente assexual sendo espancada nas ruas, não vejo gente assexual sendo vítima de um Bolsonaro ou Malafaia da vida. Eu acho que essas pessoas precisam se encontrar, trocar experiências, se conhecer, se relacionar e crescerem juntas. Não temos nada a contribuir com o movimento LGBT, exceto na defesa de seus direitos humanos”.

A comunidade assexual é, obviamente, muito diversa. Isso porque, por mais chocante que a ideia possa parecer a alossexuais, a ausência de interesse por sexo não anula todos os outros interesses que uma pessoa pode ter, nem todos os outros relacionamentos que ela pode desenvolver. Importante, neste momento, é repensar o que significa “se libertar sexualmente” — e incluir na definição a possibilidade de não querer fazer sexo.

Originally published at www.siteladom.com.br on November 19, 2015.

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Luiza
Lado M

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