“Devoção”, de Patti Smith, traz olhar reflexivo sobre o processo da escrita

Aline Naomi
Lado M

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Por que escrevemos? Nunca parei para me perguntar sobre isso. Tenho a resposta pronta para quando me perguntam por que escolhi fazer jornalismo, onde a escrita também faz morada, mas sobre o ato de escrever? Não sei mesmo.

A princípio, quando li o resumo do livro, pensei que encontraria um guia com dicas para escrever.

Devo admitir que fui ingenua. Primeiro porque qualquer coisa que tente dar a receita perfeita e inflexível de algo tão complexo e diverso como a escrita deve ser golpe. Segundo porque se tratando de Patti Smith, ícone do punk rock dos anos 1970 e artista de muitas facetas, dificilmente seria algo tão banal como uma lista de instruções para escrever.

Contracapa de “Devoção”, da Companhia das Letras

Devoção foi publicado pela primeira vez em 2017, mas em outubro de 2019 a Companhia das Letras lançou sua edição em formato para bolso, facilitando a vida de quem sempre está carregando um livro para ler nas idas e vindas do transporte público.

Basicamente, a obra é dividida em três partes. Há uma quarta parte, Escrito num trem, composta por fotos de seus manuscritos. Isso, inclusive, aparece ao longo da primeira e da terceira parte: fotografias de seus passeios, ilustrando para nós, leitoras, o que ela está narrando, materializando suas inspirações nas páginas do livro.

Na primeira parte, intitulada Como a mente funciona, Patti narra uma viagem à Paris. Fala sobre seus hábitos, como suas idas ao Café de Flore, sobre as lembranças que tinha quando viajou à cidade parisiense com a irmã, sobre obras, locais e artistas que aquele lugar remetia e, claro, sobre os momentos que aproveitava para criar e escrever.

Ao final desse diário de bordo, percebemos que a primeira parte do livro nada mais é do que os bastidores do que vem a seguir, o conto que dá nome ao livro, Devoção. Trata-se da história da Eugenia, uma jovem que vivia com a tia e pouco sabia sobre seus pais. Com a partida de sua tia, ela passa a viver sozinha e investe seu tempo no que profundamente ama: a patinação no gelo.

Ela conhece um homem que a observava patinar, que lhe dá um casaco e promete que poderia patinar quando quisesse, sem precisar esperar o inverno chegar. Eles acabam tendo uma relação e isso me causou incômodo. O fato de ele ser bem mais velho e ela ter apenas dezesseis anos, a forma como ele a manipula, as cenas entre os dois que me davam asco. Esse homem, para mim, era uma figura repugnante.

Mesmo assim, relevei e continuei a leitura. Primeiro porque a questão central do livro não é o conto, mas sim o processo criativo que levou Patti a ele. Segundo porque, mesmo com essa figura masculina, Eugenia era determinada em suas escolhas. Ao terminar essa parte da obra, fiquei satisfeita com o desfecho da trama e, sobretudo, admirada com a busca de Eugenia sobre sua essência, através de seu passado e sua paixão por patinar.

Na terceira parte, Um sonho não é um sonho, Patti tece reflexões sobre o porquê escrevemos e o processo criativo enquanto narra sua visita à casa de Albert Camus e seu encontro com o manuscrito original de O Primeiro Homem, que estava na maleta do escritor quando ele faleceu em 1960, vítima de um acidente de automóvel.

O livro não termina com uma resposta ordinária sobre o porquê de escrevermos, mas leva a reflexões muito importantes sobre a escrita e seu processo criativo. Para mim foi essencial: gosto de escrever, mas sempre sinto que não estou preparada para isso. Patti mostra que a inspiração para a escrita vem de nós mesmas, de nossas experiências, de nosso cotidiano. É mais simples do que a gente pensa. E o texto, assim como os quadros, os filmes, enfim, a arte, pode não ser essencial para nossa sobrevivência, mas é o que nos torna mais humanas.

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Aline Naomi
Lado M
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Jornalista formada pela USP, feminista e influencer anônima. Gosto de conhecer e contar histórias e acredito que elas têm o poder de transformar o mundo.