DJ Ivis, Maria da Penha e Violência Doméstica como Lei

Cris Chaim
Lado M
5 min readJul 19, 2021

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Nos últimos dias, mais um caso de violência doméstica tomou conta das redes sociais brasileiras. Em vídeo, o DJ Ivis, famoso na cena do forró, bate na esposa na presença do filho e de sua sogra. As imagens causaram comoção geral, e uma das discussões geradas foi sobre ditados populares que normalizam a violência doméstica como “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”.

O Lado M foi pesquisar de onde vem essa “normalização” da agressão contra a mulher casada por meio da análise do caso Maria da Penha, talvez o mais emblemático do Brasil.

A violência contra a mulher como Lei Nacional

As leis portuguesas valeram no Brasil pelo menos até a nossa independência em 1822, e o código jurídico luso vigente entre os séculos XVI e XIX regulamentava questões da vida privada como permissões para casar e a hierarquia social dentro de casa. Esse código, chamado Ordenações Filipinas, foi sancionado em 1595 e ficou em prática em Portugal até 1867 e no Brasil até 1916, pouco mais de 100 anos atrás — bem pouco tempo — pensando na formação do pensamento de uma sociedade.

As tais Ordenações diziam que a mulher necessitava de permanente tutela masculina por ter “fraqueza de entendimento”, e associava a honra do homem às atitudes e ao corpo feminino das mulheres de sua convivência íntima (mães, irmãs, esposa e filhas).

A infidelidade matrimonial feminina, sem grandes necessidades de prova ou julgamento formal, era penalizada com castigos físicos pelo marido e com a morte natural (enforcamento) da mulher, caso ele, o marido, julgasse necessário. Os outros envolvidos no crime (amante ou quem viesse a acobertar ou não denunciar os adúlteros) também estavam passíveis da mesma pena.

Para além do adultério, o código Filipino e outros documentos jurídicos, como o Código de Napoleão (na França, primeira metade do século XVIII), colocavam para a mulher a sua obediência e submissão integral ao homem, devendo-lhe satisfação por todos os seus atos e quereres, sendo passível de represálias, conforme a vontade do mesmo.

No Brasil, o Código Civil de 1916, que valeu até 2002, manteve as raízes dos artigos sobre a vida familiar no conservadorismo das Ordenações Filipinas, porém de forma mais branda em relação à despersonalização da mulher. Ainda assim, ditava a incapacidade relativa da mesma quando casada, ou seja, a dependência da esposa ao marido em questões jurídicas e para a administração de seus bens, sendo equiparada aos pródigo que, na Constituição Federal de 1988, são pessoas que gastam compulsivamente tudo o que tem e devem ter uma espécie de “tutor” para controlar e ajudar.

Das punições, agora estava prevista a perda do poder familiar, ou seja, a guarda e responsabilidade sobre os filhos pela viúva que casasse novamente e a “devolução” da esposa à sua família caso a mesma não comprovasse sua virgindade no ato do casamento. Já a punição de morte ou castigos físicos para o adultério feminino estavam revogados.

Apenas nos anos 1960, o Estatuto da Mulher Casada eliminou essa incapacidade relativa da mulher casada, e inaugura a igualdade entre os cônjuges, mas muitas prerrogativas ainda foram mantidas com o marido.

Na Constituição Federal de 1988 a mulher adquiriu legalmente a igualdade de direitos com o homem por meio do artigo 5º e só no Código Civil de 2002 conseguimos a plena capacidade e autonomia para todos os nossos atos civis e jurídicos, não precisando mais da autorização do pai ou marido para o que quer que seja. Também agora o poder sobre os filhos era igual tanto para o pai como para a mãe, devendo as decisões serem tomadas em conjunto, mesmo em caso de divórcio.

Outro avanço de 2002 foi que não somos mais obrigadas a assumir o sobrenome do homem no casamento, ou seja, a mulher não é mais vista como “propriedade” do marido. Além disso, o texto trocou a palavra “homem” por “pessoa” para se referir ao indivíduo como cidadão, uma mudança vista como “banal” por uns, mas que exclui, pelo menos oficialmente, qualquer diferença entre os gêneros.

Lei Maria da Penha

Maria da Penha Maia Fernandes é uma cidadã brasileira, nascida em 1945, que se tornou ativista dos direitos da mulher e contra a violência doméstica após ter sido vítima de agressões por seu ex-marido que a deixaram paraplégica. Seu caso ganhou destaque, pois diante da demora da justiça brasileira em julgar e punir o acusado, Maria da Penha entrou com uma ação judicial contra o judiciário nacional na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), um órgão que vigia o cumprimento dos direitos humanos nos países signatários.

Em 1983, Maria da Penha foi vítima de tentativa de homicídio pelo então marido e no mesmo ano entrou com processo na justiça brasileira para culpabilizá-lo, mas o primeiro julgamento foi marcado apenas em 1991. E, apesar da sentença de quinze anos de prisão, Marco Antônio não cumpriu a pena, pois a defesa entrou com recursos. O segundo julgamento, em 1996, também o condenou à cadeia, mas o réu alegou irregularidades no processo e também não cumpriu.

Mesmo antes do julgamento por aqui, em 1988, Maria da Penha já entrou com uma petição contra a justiça brasileira à CIDH, alegando que no país havia a tolerância à violência contra a mulher, e que não foram adotadas as medidas necessárias para punir o agressor, além da violação de uma série de artigos da Convenção Americana, da Declaração Americana dos Direitos Humanos e da Convenção de Belém do Pará, outro documento para a preservação dos direitos humanos que o Brasil assinou.

O Estado brasileiro foi intimado quatro vezes pela CIDH se defender, porém, em 2001, sem respostas dos nossos representantes, o Brasil foi “responsabilizado por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica praticada contra as mulheres brasileiras.” E, a sentença veio acompanhada de dez recomendações, entre elas reparações financeiras e simbólica à Maria da Penha, além da adoção de medidas efetivas e práticas contra a violência contra a mulher e doméstica.

Finalmente em 2006 foi criada a lei 11.340/06 do Código Penal, para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher e apelidada de “Lei Maria da Penha” como reparação simbólica. E, dois anos depois, a mesma recebeu do Estado brasileiro o valor de R$ 60.000,00 como reparação material.

Considerada uma das três melhores leis do mundo sobre o tema pela ONU e um marco internacional na luta contra a violência contra a mulher, a Lei Maria da Penha já completa quinze anos de sua promulgação.

Avanços certamente foram feitos, como a instauração de medidas protetivas, criação de varas especiais e outras ferramentas públicas para atendimento à mulher.

Após cinco séculos de institucionalização da violência doméstica e a legalidade da hierarquia familiar e submissão feminina ao homem, ainda são muitos os entraves para a sua efetiva aplicação. Da normalização da violência doméstica em ditos populares como “em briga de marido e mulher não se mete a colher”, em que familiares e conhecidos não denunciam suspeitas e maus tratos, ao medo de represálias e perda de direitos por parte da mulher, além da omissão dos agentes públicos em não acatarem as queixas de vítimas.

Será que serão necessários mais quinhentos anos para que a violência doméstica e contra a mulher sejam largamente denunciadas, lutados contra e julgados apropriadamente?

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Cris Chaim
Lado M
Writer for

Empoderamento feminino, aceitação corporal, drinks e livros