Doutor Estranho até inovou, mas não no essencial

Flora Cruz
Lado M

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“Inovador” foi a palavra descrita pelos marqueteiros do filme Doutor Estranho antes de ele ser lançado. Essa promessa ficou pairando no ar durante todas as horas de exibição, pressionando o filme o tempo todo para ser novo e diferente do que já vimos tantas vezes em tramas de heróis.

Doutor Estranho inovou em efeitos visuais, muito bem feitos e deslumbrantes de se ver, orquestrando as melhores cenas de luta do universo cinematográfico da Marvel. Inovou, também, na mitologia por trás da origem do herói, que dessa vez é mística, espiritual e cósmica, e não tão realista e mundana como as outras.

Porém, não inova no que é preciso inovar, urgentemente. A fórmula mágica da Marvel continua ali: um protagonista arrogante — homem branco, diga-se de passagem — que acha que sabe de tudo, até se deparar com um conflito irreparável e ter que se renovar para resolvê-lo. Se você acha que já ouviu essa história antes, é porque já ouviu mesmo. Deu certo até agora e vai continuar dando certo, porque funciona, entretém e dá dinheiro. Se deixarmos de lado questões políticas, sociais e de representatividade, Doutor Estranho cumpriu o que prometeu, sendo um filme visualmente incrível, com atuações boas e uma história agradável.

Porém, estamos em 2016, e não podemos mais ignorar essas questões. A verdade, é que por trás da lona do circo hollywoodiano, esse filme foi polêmico desde sua pré-produção. Afim de evitar conflitos políticos com a China, um de seus maiores mercados, o estúdio decidiu ignorar os quadrinhos e mudar o local de origem da mágica do Doutor Estranho do Tibet para o Nepal. A decisão foi muito criticada por tirar o protagonismo da cultura tibetana e, principalmente, por ignorar a opressão e ocupação do país pelo governo chinês.

É até compreensível que a Marvel não queira perder seu público na China, que está na casa dos 250 milhões, quase a população total dos Estados Unidos (por volta de 320 milhões). A mudança não seria tão problemática se eles adaptassem a história e atores para isso, o que infelizmente não aconteceu. Mais uma vez, o estúdio praticou o whitewashing e selecionou atores brancos para representarem os nepaleses, escolhendo uma atriz branca britânica (Tilda Swinton) para ser o Ancião, o tibetano mago-supremo nos quadrinhos.

A mudança de gênero não incomoda e nem deveria incomodar. O problema é o whitewashing e o descaso com a cultura e mitologia oriental, representada sempre no filme a partir de uma visão hollywoodiana branca e capitalista. A principio, é ótimo que tenham escolhido uma mulher para o papel e admito que eu achei uma ótima ideia antes de assistir, mas infelizmente estava errada.

Era de se esperar que a Anciã fosse uma personagem forte, considerando que ela é a maga-suprema, destinada para proteger a terra dos maus da Dimensão Negra. E superficialmente, ela é. Sabe lutar, tem uma personalidade forte e um papel importante na trama. Mas acaba por ai, o filme não passa pelo teste de Bechdel e a personagem de Swinton, junto com a Christine Palmer (Rachel McAdams), são as únicas mulheres do filme.

Além de não interagirem entre si, seus papeis são claramente feitos para a construção de personagem do Doutor Estranho, mais uma vez colocando a mulher para fortalecer o homem, uma vez que todas as suas ações e consequências só servem para a formação de caráter do Doutor.

No fim, a Marvel cumpre mais uma vez seu papel de entreter, mas está longe de inovar como prometido. Talvez devessem começar a seguir o modelo de suas séries do Netflix, que se sobressaem pela representatividade e temas mais sociais.

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Flora Cruz
Lado M
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Feminista, jornalista e mochileira, não necessariamente nessa ordem. Acredita seriamente que tudo pode ser resolvido com um sorriso e uma dose de senso crítico.