Ei, pessoas cis: antes de perguntar a nós, pergunte a si
Por Amara Moira
Perguntam a todo momento, a nós, pessoas trans, quando se deu o start, a percepção de que não éramos aquilo que havíamos sido criadas para ser, qual o estopim que desencadeou em nós essa série de transformações para que pudéssemos existir para o outro tal qual nós mesmas nos compreendíamos. Perguntam-nos e a pergunta é perigosíssima, seja por pressupor a existência duma resposta óbvia (quando é que foi? quando mesmo?), seja pelo seu alto poder de naturalizar o processo que se passa com as pessoas não-trans, não-nós, as cis, pessoas criadas para ser homem e que, para a sociedade, existem enquanto tal ou então que, criadas para ser mulher, assim existem para essa mesma sociedade.
É como se, para as pessoas cis, nunca houvesse de fato esse start, esse estalo, e, se continuam pensando dessa forma, é sinal de que não compreenderam muito bem o “não se nasce, torna-se” de Beauvoir, o fato de que é necessário todo um processo de transformação para fazer com que uma pessoa ingresse por inteiro os domínios da linguagem e, então, e só então, consiga se reconhecer e ser plenamente reconhecida pela palavra que foi criada para ser, seja essa palavra “homem”, seja ela “mulher”. E se há processo, há possibilidade de falha, assim como ocorre com toda lésbica, todo gay e toda pessoa bissexual, uma vez que a criação que recebemos é a da mono e da heterossexualidade compulsória. Pessoas cis e trans, nesse sentido, ambas vão se tornando aquilo que são na própria medida em que são tornadas esse mesmo aquilo, tudo se dando entre cessões e resistências várias.
Não é banal ou natural a maneira com que nos tornam (ou tentam nos tornar) a palavra mulher ou a palavra homem e, dada a violenta doutrinação sexista, não é tampouco simples a pessoa se dar conta de que esse destino não é possibilidade única de existência. Criam a pessoa para ser um nome, Pedro por exemplo, nome que não tem qualquer motivação genética ou biológica, nome que não se explica senão enquanto pura arbitrariedade. A pessoa, no entanto, de fato se acredita esse nome e, quando lhe perguntam “quem é você?”, a resposta é uma única palavra: Pedro. Se te fizeram para ser esse nome, se no limite te tornaram esse nome, se te convenceram disso sem que exista qualquer justificação para tal, qualquer motivação alegável, por que razão o gênero a que te fazem acreditar pertencer deveria ter uma? E se, por algum motivo xis qualquer, essa pessoa criada para ser Pedro quiser reivindicar outro nome, Luís quem sabe, ou Paula, ela terá esse direito? “Menino porque pipi”, “menina porque pepeca”, cada vez mais as pessoas trans explicitam a arbitrariedade dessa construção frasal, o profundo absurdo que ela quer afirmar como verdade incontestável.
Pessoas trans passam uma vida até se deparar com esse estalo (o estalo de nos sentirmos no direito de reivindicar outra existência que não aquela a que nos condicionou o diagnóstico que fizeram do nosso genital) e aí, retrospectivamente, começam a perceber traços dessa inesperada verdade pipocando em momentos muitos de sua história prévia, ao passo que outras desde muito cedo já se irão compreendendo enquanto “o outro gênero”, sendo por conta disso alvo de todo tipo de exclusão social (ocorre, inclusive, que por vezes percebam a nossa transgeneridade, ou a nossa possível transgeneridade, antes mesmo que tenhamos consciência dela, nos tirando do armário à força quando ainda estamos completamente vulneráveis frente à violência que enfrentaremos a partir dali). Parte considerável, no entanto, nunca se permitirá imaginar a possibilidade dessa existência não-oficial.
Perguntam a nós e, com isso, evitam fazer a mesmíssima pergunta a si mesmos. Perguntam e querem respostas, horrorizados quando não as damos. Perguntam se temos certeza, se é definitivo, se não vamos nos arrepender, mas nunca se perguntam nada. São, simplesmente são, a mulher mulher, biológica, o homem de verdade, com pênis. Talvez porque não queiram nem imaginar que não sejam o que pensam ser, talvez porque, se de fato forem outra coisa que não aquilo que se imaginam, preferem continuar sem sabê-lo (e isso diz muito da vida a que tem direito toda pessoa que faça essa descoberta).
Originally published at www.siteladom.com.br on April 14, 2016.