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Entenda o caso Mari Ferrer: humilhação, machismo e “estupro culposo”

Cris Chaim
Lado M
Published in
5 min readNov 4, 2020

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Hoje, 03/11/2020, é um dia triste para todas as brasileiras, mas especialmente para Mariana Ferrer, bem como todas as vítimas de estupro. Ouso dizer que também é um dia triste para a estátua Justiça, na Praça dos Três Poderes em Brasília. Se ela fosse humana, provavelmente seria possível ver as lágrimas escorrendo, e quem sabe até um refluxo diante das imagens vazadas pelo site The Intercept:

No início de setembro aconteceu via videoconferência audiência para julgar a acusação de estupro da promoter de eventos Mariana Ferrer contra o empresário André Aranha, ocorrido em dezembro de 2018. A sessão foi um verdadeiro show de horrores e absolutamente escatológica: o advogado do réu usa palavras de baixo calão, expõe fotos das redes sociais da vítima para insinuar que ela “era sem nível”, chama-a de falsa, dissimulada e diz que seu cliente não teria como saber que ela estava incapaz de tomar decisões. O juiz faz poucas intervenções, deixando o circo pegar fogo, e ao final declara André como inocente. Na sentença do julgament,o surge a implicação de estupro culposo, um dos principais pontos da polêmica.

Diversas autoridades jurídicas, políticos e órgãos públicos se manifestaram repudiando tanto a postura dos presentes na audiência quanto a sentença expedida. Os usuários das redes sociais criaram a #justicaparamariferrer e um abaixo assinado, já com mais de três milhões de assinaturas, para pressionar o Tribunal de Santa Catarina a reabrir o caso.

Mas existe “Estupro Culposo”?

A sentença emitida pelo juiz Rudson Marcos implica que houve o “estupro culposo”. De acordo com a legislação brasileira (Art 213, Lei nº 2.848, Código Penal), o estupro é determinado como o constrangimento de alguém, por violência ou grave ameaça, para se conseguir conjunção carnal (penetração parcial ou total do pênis na vagina) ou outros atos libidinosos.

A Lei especifica o Estupro de Vulnerável (Art 217-A, Lei nº 2.848, Código Penal) como aquele praticado contra alguém menor de 14 anos ou pessoa que não tenha capacidade permanente (enfermidade, distúrbio cognitivo) ou temporária (embriaguez, por exemplo) por qualquer causa que impeça o seu discernimento para a prática do ato libidinoso e oferecer resistência contra o agressor.

Os termos culposo e doloso são usados no Código Penal para determinar se o acusado teve intenção ou não de praticar crime ou assumir o seu resultado:

Art. 18 Código Penal

Crime doloso (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

I — doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo;(Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

Crime culposo (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

II — culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia. (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

Parágrafo único — Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente.

Simplificando o juridiquês:

  • Crime doloso: quando o indivíduo tem a intenção de cometer o delito
  • Crime culposo: quando o indivíduo comete o delito sem saber que é ilegal
  • O parágrafo único do artigo 18 explica que, caso o ato seja determinado por lei como crime, não há chance de ser culposo.

A denúncia do Ministério Público contra André Aranha era de “delito de estupro de vulnerável (art. 217- A, § 1o, do Código Penal), com fulcro no art. 386, III, do Código de Processo Penal (fls. 3399/3489)” (Texto da Sentença Oficial).

Ou seja, ele foi acusado de praticar um ato libidinoso, por meio de ameaça ou violência, com uma pessoa, que não conseguia tomar uma decisão consciente ou resistir ao uso da força.

Na sentença consta que André não sabia que Mariana estava vulnerável e que as perícias realizadas não identificaram níveis suficientes de álcool no sangue da vítima para indicar que ela estava bêbada e não encontraram traços de outras drogas. E, diz que, para o crime ser considerado doloso (com intenção) o indivíduo precisa saber que a vítima está vulnerável.

O termo “estupro culposo” não é propriamente mencionado na Sentença, mas o magistrado discute, baseado em livro sobre direito penal, que a “modalidade culposa do estupro de vulnerável” não foi prevista na lei brasileira.

O juiz fala também sobre a “hipótese de inescusabilidade”, em que o acusado não é considerado culpado, já que se soubesse que era crime o seu ato não o teria feito. A seguir, ele escreve que a vítima não estava vulnerável, não negou as investidas do agressor e como o agressor não sabia da possível incapacidade da mesma, resultando assim na inocência de André.

Humilhação e má conduta do caso

Além das discussões técnicas das leis e termos jurídicos usados no processo e na sentença, a principal polêmica está na forma como a audiência foi conduzida pelo juiz e os abusos, que podem ser comparados a assédio moral, cometidos pelo advogado do acusado. Ambos faltaram com respeito, ética e a mínima educação com a vítima.

O próprio juiz do Supremo Federal Gilmar Mendes declarou hoje que o sistema judiciário deve exercer o acolhimento para com as vítimas e pediu a revisão do processo pelos órgãos competentes.

Eu já participei como vítima em um processo jurídico e a audiência foi um dia horroroso: por mais que eu soubesse que era “causa ganha” e estivesse preparada pelo meu advogado, a ideia de estar na frente do juiz e do meu agressor me fez não dormir por uma semana e tomar calmantes. Isso porque o meu caso não era nem 0,001% comparado ao da Mari. A minha audiência durou menos de 30 minutos, ganhei a causa e tive a graça de pegar uma juíza incrível, que eu quase abracei no final, mas mesmo assim não quero passar pela mesma experiência pelo resto da vida.

O grande problema (um dos, são tantos) da má conduta tanto do juiz quanto do advogado é a desistência de denúncia de milhares de vítimas de estupro, assédio sexual ou suas outras formas. A pessoa já está extremamente frágil e enfrentar um sistema duro e insensível só piora o seu trauma.

Mas não desista

Se você passa ou passou por um episódio de estupro, assédio sexual ou qualquer outro, há organizações muito responsáveis que podem te ajudar como o Mapa do Acolhimento (https://www.mapadoacolhimento.org), em que profissionais da saúde e advogadas estão a sua disposição para ajudar. E, se quiser, me manda uma mensagem para conversar.

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Cris Chaim
Lado M
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Empoderamento feminino, aceitação corporal, drinks e livros