Eu e a anorexia: um namoro longe de ser saudável
Não tinha quinze anos sequer, no final do verão daquele ano, quando me agarrei à ideia de que perderia peso. Em verdade, para além da pouca adolescência, não muito me sobrava: nem justa causa, nem lucidez, nem madureza de corpo. Com o biquíni ainda pregado às carnes, era nada, senão, uma criança — assustadoramente devota à condição de gênero que me fora entregue na soleira da vida. A devoção, eu soube, aquela eu enfiara pra dentro a goles lentos, é mesmo a primeira cena dos obstinados. Meu registro, afinal, é o tempo. Ou a pressa. Ou o princípio. O princípio dos obstinados é a inconsequência. E disso, fui prova incontestável. Eu, encampando uma guerra contra a comida na fronte de meu abdômen, fui prova incontestável.
Dali, eu mal vi aprumar o outono. Minha referência primeira era a manhã. Dormia muito cedo, para não sentir fome, e mais cedo ainda levantava. Meu insumo era sempre um copo de café, ligeiramente adoçado, que eu tomava devagar, como se para nunca terminá-lo. O gosto pelo caldo preto, que ainda é hábito malcriado do tempo, eu pude resgatar. Mas o que não restauro é a misericórdia do estômago. É resistir a ela, quando, por um bom pedaço de tempo, engoli apenas uma maçã verde no almoço. Deixo grafado: nos miolos sumarentos daquele mau fruto, noventa calorias se acumulavam — além da pilha de vidas femininas lastradas pela anorexia.
Quanto é muito, afinal? Vinte por cento dói. Vinte por cento das mulheres que desenvolvem esse distúrbio alimentar morrem. Mas não me atropelo; porque com cinco quilos a menos, o patriarcado ainda me saudava. E a fronteira do estorvo… É que isto não bastaria mais. O fato, então, era que eu já não acreditava perseguir o desejo dum outro qualquer. Com a opressão inoculada, tinha por certo que era dona de mim — proprietária o quanto bastasse para, diante do espelho, destroçar meu reflexo. Se o cometesse agora, veria, então, uma coluna de mulheres por detrás de minha própria coluna; molestadas, todos os dias, pelas mesmas chibatas que me açoitaram. Paradoxalmente, eu nunca antes me tocara tanto. Nunca antes me penetrara tanto. Se tempo tivesse, pararia por horas estudando cada regaço de meu corpo. Na peleja da imagem, eu vencia se conseguisse aprofundar o abismo em minhas costelas; se conseguisse caçar, na superfície da carne, os movimentos dentro de mim. A verdade sobre meu corpo é que o machismo não me ensinou só a odiá-lo; mas a destruí-lo, e a marchar, infatigavelmente, à procura dum outro.
Dez quilos foram abaixo. Não indague a uma anoréxica o porquê de suas razões. Há uma firmeza intrépida, mas insana, em sua teimosia. Repare: não há força, nem coragem, nem vigor. É apenas obstinação. A essa altura, já sou presa emboscada, à procura duma fresta de escape. A consciência deformada dum perigo que só existia em mim mesma — mas que eu deslocara para o outro — me tornou arredia. Eu fugia ao olho dentro do olho, ao gesto, às formas sensíveis. Um afago mais apertado podia bem me desvelar. E, não por acaso, quiseram saber de minha frieza súbita. Minha mãe morava longe, nesse tempo, e estranhou meu afastamento. De lá, não poderia ver a ida de minha procissão. Daqui, eu sentia algum alívio — um desafogo adoentado — na ausência de suas retinas sobre mim. O reencontro, porém, a afundava de espanto. Eu corria à porta, como quem tinha saudade, mas sempre me faltou coragem para enxergar a mim, e dar conta do que assumiam minhas roupas, cada vez mais frouxas ao corpo. No fim das contas, elas confessavam por demais. Então, mamãe trepidava… E não conseguia esconder seu aterramento. O rosto empalidecia, e os olhos em órbita, morriam devagar.
Na sequência, chorava.
Pela dor do outro — pelo que me restava de alteridade — me habituei a mentir. Menti pela anorexia. Prometi que me cuidaria pela anorexia. Fiz juras aos meus amores para ser fiel a minha amante; minha dona, minha menina.
Então, viriam os olhares. A verdade é que sempre vêm. Na ciranda do patriarcado, o olhar come pelas beiradas, arrasta sentidos endiabrados para a mulher, e é o acúmulo simbólico duma realidade de opressão estrutural muito mais profunda. Entre nós e o outro, um abismo — de gênero e de juízo social. Eis, então, outra vez, o espelho defronte o qual eu refletia aquilo que não podia ser; que não queria ser, mas que era oprimida para sê-lo. A operação do feminismo, ao nível do sujeito, consistiria em desconstruir este espectro. Mas, àquela hora, eu não poderia fazê-lo. A espreita vinha ter comigo como um gatilho — e se descarregava para esfacelar meu forte, outrora construído para esconder uma verdade já esgarçada no chão.
Com quinze quilos a menos, o mundo se torna um cochicho. “O que houve com ela?”; “Como está esquálida! Isso é normal?”. “por deus, interne-a…”. De longe, à surdina, posso escutá-los, mas não posso dizer palavra. Não posso questionar o que eles me têm destinado. Também já não podia mentir, pois meu corpo me punha à mostra. Todo par de olhos, em terem comigo, sempre me arregaçavam de cima a baixo. E, então, eu sentia traindo minha devoção. Não podia mais defendê-la — ou guardá-la da guerra que lhe haviam declarado. O ponto aqui é que todas as ditaduras engendram, por natureza, seus próprios nódulos de resistência. O feminismo resiste ao patriarcado; meu corpo, junto às forças sociais que me cercavam, tentava doidamente resistir à anorexia.
As tentativas de outrem falharam. Mas as minhas próprias, ao se rebelarem, empurravam-me a consumir, compulsivamente, o que um adulto faminto não teria firmeza de enfiar para dentro em um dia inteiro. Eis aí minha ilha de penitência. A metáfora será sempre ingrata, mas, ainda assim, precisarei dela: a culpa em que meu corpo se esmorecia, ao perder o controle, é a mesmíssima que encalça a nós, mulheres, todos os dias, em duras rédeas estéticas, sociais, sexuais e culturais. Não por acaso, ambas podem nos sufocar. Até a morte.
Pois que com vinte quilos a menos, sinto medo de morrer. Até o espelho me fadiga. Pudesse eu materializar a vida, e diria ser ela um fiapo, prestes a desatar. De perto, assisti chorar quem nunca antes vira derramar uma lágrima. O pedaço de minha história que não consigo regurgitar é como pude me levantar. Em revisitá-la, agora, preciso operar um recorte de gênero. Só assim perdoaria a mim. A anorexia é, afinal, com uma cicatriz de guerra — ou uma tatuagem sem cor. Não poderei esquecê-la nunca; tampouco vou me livrar de suas nódoas indeléveis. Em verdade, aprendi a suportá-la; forçosamente, a respeitá-la e, então, a ressignificá-la. Agora, já posso botar meus olhos dentro dos seus, expropriar seus traços, chapados a ferro, e fazer fogo. Ainda, antes de parecer intrépida, será justo dizer que talvez eu já me tenha flagrado recaindo; e que, por vezes, ainda possa sentir seu hálito morno bufando em meu pescoço. Mas se apanho uma mulher dizendo que precisa perder peso, sinto um arrepio me correndo de cima abaixo, e me faço desmantelar a ideia. Teria instinto de dissuadi-la, agora. Segurá-la pelo ombro e dizer-lhe que não. Mas não poderia. Não conheço a vida que ela suporta nos ombros.
Então, no que me torno, ao interceder? Toda ação, no feminismo, precisa ser coletiva. Isto não é sobre alguém. Estamos juntas, no meio do olho do furacão. Sente aqui. Eu não vou lhe contar uma história sobre anorexia. Eu vou lhe contar uma história sobre machismo. Você vem?
Esse relato foi escrito pela Liz Dórea. Ela tem 18 anos e é estudante de jornalismo em São Paulo.
Originally published at www.siteladom.com.br on October 1, 2015.