Eu não quero ter um filho neste mundo
Este texto diz respeito somente a mim e a uma indagação que tenho trazido comigo há algum tempo. Não diria anos, mas acho que é algo que persiste há vários meses da minha vida adulta. Quero deixar claro também que não estou questionando a situação de quem já tem filhos ou de quem quer ter filhos. Esse texto é sobre mim, minha vida e meus pensamentos.
Mas eu não quero ter filhos. E esta pandemia de coronavírus só reafirmou esta minha ideia.
Digo isso porque, apesar de todos os aspectos positivos que uma gravidez e a maternidade podem trazer (felicidade, amor incondicional, a noção de família, entre outros), as preocupações sociais são prioridade na ordem dos meus pensamentos e me impedem de ver o lado bom da coisa. Só consigo ver os aspectos negativos de colocar mais uma criança nesse mundo.
Eu não consigo não pensar na situação global, no medo da infecção, nas mortes causadas pelo COVID-19. Eu não consigo ignorar o fato de que aqui no Brasil quem depende do SUS (Sistema Único de Saúde) tem muito mais chance de morrer ou de sofrer muito mais do que quem tem condições financeiras para pagar um convênio médico porque, apesar de o sistema de saúde pública ser algo maravilhoso e modelo para o mundo, ainda sofre cortes e mais cortes de governos que não enxergam o potencial de tratamento de um sistema público. Esses mesmos governos que, nesse momento de crise, pedem a volta de médicos cubanos e providenciam mais dinheiro para o sistema, algo que deveria ser feito constantemente há anos.
Ou de que nosso país passa por uma crise política simplesmente porque nosso presidente ignora recomendações médicas.
Tampouco consigo pensar em ter filho e entregá-lo para uma sociedade que insiste ser imune a uma doença que atinge mais idosos e crianças. Sim, ter um filho é lidar com riscos a sua saúde por pelo menos uma década, e esperar que seu filho não seja contaminado por uma pessoa que acha que sair para bares lotados aos fins de semana não vai ser um problema de contágio para uma população inteira ou que dá risada achando ser imune ao vírus.
Além desta pandemia, que pode até ser considerada passageira num horizonte de longo prazo (afinal, ainda sou nova e posso prorrogar uma gravidez por pelo menos até 15 anos, quando terei 40 e poucos), ainda temos outras questões: o Brasil é um país violento, e se meu filho for mulher ou transgênero, pode ser assassinado simplesmente por ter nascido sem ser homem. Há ainda o aquecimento global e sua crise climática que podem encurtar nossa vida ou torná-las cada vez mais difícil (especialmente, de novo, se você for pobre e morar em regiões mais vulneráveis).
Eu não quero ter que contar para um imaginário filho que o mundo é ruim, que ele provavelmente será parte de uma geração que vai sofrer com a escassez de água, com o surgimento de superbactérias que podem aniquilar sua existência, que seus alimentos foram tão modificados que ele com certeza terá câncer ou alguma doença nociva demais para ser curada. Não, eu não quero isso para meu filho. Esse fardo minha geração já carrega e digo que não é nada agradável.
Não vou colocar um filho num mundo que teme mais pelo mercado financeiro do que pela vida das pessoas, que não percebe como o capitalismo falha miseravelmente nessas horas e acaba precisando da ajuda dos Estados. E sorte de quem morar em países ricos, porque por aqui um Estado falido e incompetente vai ajudar a afundar ainda mais a economia, e veremos recessões, desemprego e mais pobreza pelos próximos anos. Não quero explicar para um filho o que é pobreza e por que na esquina de casa há pessoas morando na rua, e não dentro de uma casa. Não, obrigada. Essa resposta minha mãe nunca conseguiu me responder, e eu sei que ela queria o melhor para mim, fazendo com que eu evitasse a realidade.
Aliás, outro desafio: como educar um filho?
Como dizer que existe machismo, racismo, xenofobia, transfobia, homofobia e outras fobias que permeiam nossas vidas? Não. Prefiro discutir essas questões com quem já está neste planeta e ainda pode mudar. Mas apresentar essa sociedade podre para um novo ser inocente é maldade, inconcebível e beiraria ao egoísmo.
Momentos de crise nos deixam mais alertas sobre nossa realidade. Se passamos por isso, podemos passar por qualquer coisa. Mas é exatamente isso que penso: quero passar e quero ter a consciência de que não deixei um ser aqui que pode passar pelos mesmos problemas. Eu quero deixar um mundo melhor para as futuras gerações, mas não quero arriscar e deixar nada para ninguém sabendo que não depende só de mim esse mundo melhor.
O que depende de mim é a escolha de deixar alguém para trás, que vai precisar passar por tudo isso sem um propósito maior, sem uma certeza de que vai poder viver feliz, em constante calma ou paz.