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Feminismo na era digital: os impactos das redes sociais na discussão de gênero

Nina T.
Lado M
Published in
7 min readMar 17, 2020

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É impossível pensar em uma vida analógica em 2020. Se você está lendo esse texto, já significa que você tem acesso à internet, a um celular, a um tablet, a um computador… E as mudanças profundas causadas por essa revolução nas comunicações impactam, como não poderia deixar de ser, as lutas sociais: movimentos como o #MeToo ou #PrimeiroAssédio se espalham rapidamente nas redes sociais, construindo a impressão de expansão da discussão. Ao mesmo tempo, cresce uma sensação de intolerância geral. Para entender um pouco do impacto das redes no feminismo e no combate ao machismo, aos preconceitos de gênero e as discussões sobre feminismo na Internet, o Lado M conversou com Mayara Pacheco, psicóloga e professora universitária, que publicou o artigo “Vozes que ecoam: Feminismo e Mídias Sociais” em 2016.

O motivo do nome de sua dissertação, segundo Mayara, é o quanto os ecos são apenas reverberações da própria fala dos autores. Para ela, o nome surgiu por uma percepção de que o “discurso não atingia ninguém além das pessoas circunscritas no ambiente da universidade, e hoje eu começo a perceber o quão necessário é falar para fora do campo universitário, assim como falar pra fora das redes sociais”. Segundo a pesquisadora, a analogia da internet é “como se você colocasse um grande megafone dentro de cada computador ou celular”, amplificando “vozes que antes nem se consideravam vozes”. Ao mesmo tempo, “vamos ter homens completamente agressivos e algumas mulheres completamente agressivas às questões do feminino”.

“Na relação virtual, por conta de uma privacidade falsa, um distanciamento entre os sujeitos, uma ideia de suposta ‘estou seguro aqui em casa’, as pessoas se sentem mais no direito de serem ofensivas e agredirem mais as outras”

Mayara explica que “as redes amplificam essa questão bastante odiosa”, embora algumas reações tenham um peso diferente por conta do contexto social em que se insere a dinâmica do preconceito. “Eu tenho um amigo que usa esta metáfora para falar de movimento trans: ‘as pessoas esperam que a gente reaja com flores, mas você tem que pensar que nós, como pessoas trans, estamos totalmente dilacerados, é como se a gente tivesse descido de um tobogã de navalhas, a gente sai todo machucado e aí, com qualquer fala, o que se tem a impressão é que se joga álcool nessas feridas. O que se faz é inflamar essa dor.’ Com o movimento de mulheres, eu percebo um pouco dessa dinâmica da dor. Em alguns momentos a gente até percebe uma atitude pedagógica é um pouco mais eficaz, mas tem horas que você fala ‘não dá mais, já cansei. Não consigo mais conversar’. Isso vai muito também do limite individual, é mais do que de um limite coletivo”.

Ao mesmo tempo, a união de pessoas diferentes estarem dentro do debate pode ter um efeito positivo. “Às vezes alguém não está dando conta de ser tão acessível, mas tem outra pessoa que está ali e pontua. Quando a gente recebe apontamentos de pessoas que nos são próximas e pensam parecido com a gente, é mais fácil introjetar isso e parar para pensar no que estamos fazendo. Mas entendo que em alguns momentos é necessário que a gente continue gritando e sendo agressiva, sim”.

Um dos pontos citados por Mayara é que as discussões tragam questões construtivas, gerando empatia. Um dos episódios citados pela pesquisadora é de quando houve um Desafio da Maternidade. À época, a ideia era que mulheres compartilhassem fotos com seus filhos e falassem sobre suas experiências como mães. Enquanto um grupo mostrava “mulheres muito felizes com seus filhos, aquela chuva de amor” outras se mostravam “felizes com os filhos, mas descontentes com a maternidade, porque é um peso, uma responsabilidade, uma atribuição”. A internet então foi tomada por uma discussão sobre o assunto. “Eram mulheres muito bravas ou com as primeiras, ou com as segundas, que estavam tentando desromantizar a maternidade. Mulheres que não eram mães entraram na briga. Aquilo me incomodou. Eu não sou mãe, mas olhando pra isso de uma maneira solidária escrevi um texto sobre apoio às mulheres com aquela disputa de ego. E eu me surpreendi com o número de pessoas que vieram falar comigo sobre aquele texto. Dá para ser solidária com todas essas mulheres. Percebi que a gente tem que ser mais sensível com a questão umas das outras e comecei a olhar isso de maneira mais sensível”.

Por esse motivo, Mayara entende que muitas vezes um deslize que ofende alguém pode ser uma oportunidade de crescimento e para entender outras realidades, utilizando o fato de maneira pedagógica em um debate construtivo sobre feminismo. “O fato de ofender as pessoas com algo que você nem tinha parado para pensar eu acho que são as possibilidades diferentes de se reescrever, de produzir outras coisas, ouvir outras vozes. Não acho que seja negativo no sentido de ‘foi super ofensivo, vamos acabar com essa pessoa’, você percebe? Tem uma postura pedagógica nisso tudo, de aprender umas com as outras, e nós não estamos livres disso, cometer pequenos deslizes. Não é uma questão de politicamente correto, é uma questão de respeito, aprender a respeitar as pessoas, a gente não nasce sabendo o que é respeito, respeito é um comportamento humano, a gente precisa conviver com pessoas, dentro de uma lógica respeitosa para também ser respeitoso com as individualidades e as subjetividades”.

Para a pesquisadora, um dos pontos positivos de ter acesso às redes sociais é justamente a possibilidade de troca com pessoas fisicamente muito distantes. “Se você fosse da minha microrregião, muito provavelmente eu teria mais chance de te conhecer. Se você é de uma região mais afastada da minha, e eu estou pensando em território mesmo, a gente não teria oportunidade de se conhecer, nem de fazer trocas, que é o que a gente está fazendo agora. Então eu acho que essa aproximação, essa possibilidade do que é de meio privado se tornar um pouco público é uma forma de a gente se identificar com outras mulheres e isso é muito importante, a gente conseguir se reconhecer e não ter aquela sensação de que estamos sozinhas, como se a gente tivesse um fardo muito pesado e só sobre nossos ombros. A gente cria pontos de identificação, pontos de interlocução e também pontos de apoio. A rede social é um ponto muito anterior ao meio digital. A gente fala se redes sociais no digital, mas já dizíamos de redes anteriores a isso. Quais são as minhas redes de apoio? Quais são as pessoas com as quais eu posso contar? No meio digital, a gente tem a possibilidade de poder contar com pessoas que a gente nunca nem viu. E que sabe-se lá se vamos ter chance de ver algum dia. Então eu acho essa questão de aproximação, mesmo que ela seja intermediada pelo campo digital, algo muito positivo”, explica.

Para conseguir dar ainda mais visibilidade ao feminismo e a esse discurso, a forma de falar e estruturar a discussão para pessoas fora da “bolha” é uma das grandes preocupações de Mayara. Professora no Centro Universitário Salesiano de São Paulo, a autora usou sua experiência em sala de aula para extrapolar a discussão sobre as redes sociais. “Vivendo na bolha achei que minhas alunas de 19, 20 anos tinham a mesma compreensão de feminismo que eu tinha, como algo libertador, igualitário, como teoria crítica, e foi muito pelo contrário”. Desde 2015 trabalhando em cima de um projeto para levar a discussão sobre feminismo para sua universidade, Mayara entendeu que “a minha postura precisaria mudar. Eu não estava pregando nada pra elas, eu não estava oferecendo uma verdade, mas uma forma de leitura do mundo e se elas achassem interessante, ok, senão a gente continuaria conversando do mesmo jeito”. Apesar de problemas pontuais e alguns atos agressivos — uma intervenção feita nos banheiros femininos com mensagens de empoderamento, amor próprio e representatividade foi atacada por homens que rasgaram os cartazes -, Mayara cita uma clara evolução ao longo dos anos. “Já tive momentos em que uma fala completamente preconceituosa, machista, foi super agressiva com um grupo e eu não precisei tomar nenhuma ação, o próprio grupo que resolve, consegue devolver para aquela pessoa o quão agressivo foi, o quão preconceituoso foi, isso é muito legal, esse movimento grupal foi muito incrível. E eu consegui acompanhar isso. Eu acho fantástico”.

Para Mayara, o principal é ter disposição para tomar atitudes como essas também nas redes sociais, trazendo a discussão de forma construtiva e ajudando a criar um debate. “Agradecer as pessoas que estão dispostas. Tem que ter disposição. Tem muita gente discutindo sobre feminismo e sobre gênero, diversidade, entre outras coisas, mas acho que em alguns momentos a gente precisa se ouvir e ver como a gente está falando com as outras pessoas. Muitas vezes a gente fala pra gente mesmo. As redes são pontos de interação e identificação, as pessoas não têm acesso às discussões que estamos tendo agora. Temos que pensar para fora desses muros digitais e de concreto. Isso ainda é um desafio e é um desafio que se a gente tem disposição, a gente consegue falar sobre feminismo, sobre direitos de mulheres. Pensar em formas de abrir o leque são sempre desafiadoras, mas a recompensa é muito grande”.

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