Garotas mortas e o descaso da sociedade

Thais Lombardi
Lado M

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“Eu não sabia que uma mulher podia ser morta pelo simples fato de ser mulher, mas tinha escutado histórias que, com o tempo, fui ligando umas às outras. Casos que não terminavam com a morte da mulher, mas em que ela era objeto da misoginia, do abuso, do desprezo”

Muito antes que a palavra feminicídio fosse utilizada, os assassinatos de mulheres já era algo bastante comum. E para a autora Selva Almada, algumas dessas mortes a marcaram desde a infância em uma cidade pequena da Argentina.

Garotas Mortas (Todavia, 2018) é um livro sobre a investigação pessoal da autora acerca de três casos violentos e sem solução que aconteceram na Argentina nos anos 80.

Andrea Danne, Sarita Mundín e Maria Luísa Quevedo são os nomes das jovens que tiveram suas vidas ceifadas por um único motivo: eram mulheres.

A autora possui uma escrita que conversa com o leitor, e por isso -além do tema-ficamos tão presas à narrativa e aos sentimento descrito, que é como se a acompanhássemos a cada destino em sua investigação.

Garotas Mortas é um misto de literatura policial, jornalismo investigativo e autobiografia, pois essa inquietação com mortes de mulheres é algo que vem de anos. Selva Almada quer entender como, até mesmo nos dias de hoje, crimes de gênero não são tratados como deveriam ser, deixando mulheres a mercê do machismo e desprotegidas até mesmo dentro da sua casa ou ambiente de trabalho.

A banalização desse tipo de crime, a impunidade e a vista grossa para problemas femininos só contribuem para que isso continue. Basta pesquisar no Google e ver quantas mulheres são mortas pelos parceiros, estupradas na volta do trabalho ou buscam ajuda na delegacia e são motivos de piadas ou comentários maldosos por policiais e familiares.

O feminicídio parece que ainda é culpa da mulher: “mas ela estava usando uma saia curta”, “ela quis terminar comigo e eu não aceitei”, “apanhou porque não me obedeceu” e todas aquelas desculpas que ainda escutamos e boa parte da população ainda aceita.

Garotas Mortas

A autora começa o livro narrando um dia comum em sua infância em Entre Ríos. Era uma manhã de novembro quando ela ouviu a notícia da morte de uma adolescente: Andrea Danne. A partir daquele momento, cada notícia sobre feminicídio remetia à Andrea e a cada mulher morta, Selva sentia que esse tipo de crime era tratado como menor do que os outros. Existe o assassino, mas incrivelmente ninguém foi preso pelos três crimes que a autora narra, ou seja, crimes sem culpados.

Impossível não fazer um paralelo com um dos feminicídios mais famosos ocorridos no Brasil, o de Elisa Samudio: nesse caso, fica muito mais a mostra o descaso e como a vida dos criminosos sequer foram afetadas na mesma proporção que a dela ou de sua família.

O goleiro ficou preso, mas virou celebridade e casou-se de novo. Enquanto a mãe e o filho de Elisa sentem sua falta e a injustiça, além de aguentarem julgamentos e chacotas por parte de muitos que insistem em culpar a vítima pelo seu desaparecimento.

Assim que comecei a ler, rapidamente me lembrei do primeiro caso de feminicídio que eu tive contato e que me tirou o sono por dias, o de Daniela Perez. Eu tinha 3 anos quando ela foi assassinada e é claro que não lembro, porém foi o primeiro que tive contato anos depois. Eu lembro que sonhava com tesouradas e ficava horrorizada só de imaginar como ela deve ter sofrido.

Também é fácil — e doloroso — ver que a cada dia que passa temos contato com casos mais reais, que estão perto do nosso convívio e que um dia podemos ser as próximas.

Selva Almada retrata também como a vida das famílias vira de cabeça para baixo com os crimes: nas três famílias, a estrutura foi quebrada. Muitos morreram, famílias desfeitas, crianças órfãs, doenças e uma eterna tristeza. A impunidade e o descaso no atendimento às vítimas em hospitais e delegacias dão forças para que crimes como esse continuem acontecendo. O feminicídio por mais que seja crime ainda não é punido como deve ser e isso causa medo.

Garotas Mortas é um livro que mostra que a venda nos olhos da sociedade tem nome: machismo e misoginia. E que ainda estamos longe de uma sociedade que enxerga suas mulheres como parte importante da sociedade que prefere ensinar suas meninas a se defenderem e comportarem a punir os homens.

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Thais Lombardi
Lado M
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Cineasta, redatora, revisora, feminista e vegetariana. Gosta de ler, gatos, fazer crochê e destruir o patriarcado.