Ghost in the Shell numa casca vazia

Carolina Tiemi
Lado M
Published in
9 min readJul 22, 2018

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Quando manipular o corpo e a mente de uma pessoa se torna tão fácil quanto montar e programar um computador, o que significa ser humano?

Em Ghost in the Shell, a agente cibernética Major Motoko Kusanagi é a líder da unidade de serviço secreto Esquadrão Shell, responsável por combater o crime. Motoko foi tão modificada que todo seu corpo é robótico, tendo como mais distante do artificial apenas sua consciência, seu espírito. De humano teria sobrado somente um fantasma de si mesma.

Com essa premissa, o mangá é um dos grandes ícones da ficção científica, sendo o marco inicial de um universo que abrigou também nove filmes, dois animes (sendo um deles com duas temporadas), um OVA e uma série de jogos.

Capa da edição brasileira de Ghost in the Shell, publicada pela JBC, e o cartaz de A Vigilante do Amanhã.

Em A Vigilante do Amanhã, adaptação dirigida por Rupert Sanders, Motoko é uma humana que foi ciberneticamente melhorada, com a função de deter os mais perigosos criminosos. Mas na medida em que se prepara para enfrentar um novo inimigo, descobre que foi enganada: o acidente que sofreu mais nova e a separou de seus pais não foi apenas um acidente.

Na coletiva realizada em Tóquio, ao ser questionado sobre qual assinatura traria para o longa, Sanders brinca: “Tudo o que fiz foi pegar o trabalho destes dois mestres e colocar na tela”. Os dois mestres em questão são Masamune Shirow e Mamoru Oshii, respectivamente o autor do mangá e o diretor do filme Ghost in the Shell (1995), Ghost in the Shell 2: Innocence (2004) e Ghost in the Shell 2.0 (2008).

Entretanto, se ao menos visualmente o filme de Sanders homenagea a obra original, no que diz respeito ao enredo, existe uma divergência de conteúdo. Enquanto os filmes de Mamoru ditam uma discussão filosófica sobre o ser humano, o que é real e o que é ético ‒ seguindo a postura do mangá ‒, no filme de Sanders, a movimentação da protagonista parte de uma sede de vingança pelo seu passado, roubado por um vilão fácil de digerir e pouco esférico, cuja posição no eixo “bem” ou “mal” fica exposta desde o início da película. Assim, ainda que a protagonista de Sanders também questione sua identidade e humanidade, Major Motoko Kusanagi, no papel de Scarlett Johansson, é reduzida à Major: um corpo bonito, forte, lutador, casca de um fantasma raso e parco.

Scarlett Johansonn, dirigida por Sanders em A Vigilante do Amanhã, é corpo, mas não é a complexidade e o fantasma da personagem

O whitewash e os estereótipos

Ter apenas “Major” como vocativo para a protagonista, diferente das demais obras, revela um ponto de A Vigilante do Amanhã comentado antes mesmo de seu lançamento: o whitewash.

Vídeo What Japanese Think of Whitewashing (Ghost in the Shell, Death Note, Interview), do canal That Japanese Man Yuta, em que o entrevistador vai às ruas perguntar a opinião das pessoas quanto ao whitewashing. O próprio afirma na descrição do vídeo que os japoneses não estão familiarizados à conceito ‒ as obras com este teor são lidas como ocidentais, o que permitiria atores não asiáticos em adaptações.

Whitewash, ou whitewashing, é uma expressão ainda sem tradução exata para o português. Trata-se da inserção de uma imagem branco-caucasiana para um personagem de outra etnia, como uma lavagem em branco. É muito comum nas produções de entretenimento e cultura pop que personagens negros, indígenas, latinos e asiáticos sejam interpretados por um ator e uma atriz branca. É o caso de A Vigilante do Amanhã. E, mais do que apenas a substituição, na trama gasta-se um tempo de roteiro criando explicações para o molde branco-europeu de Scarlett no papel de uma agente nipônica — a justificativa, no entanto, não convence. Existe um apagamento da história de Motoko e de sua família. A aproximação de uma mulher branca com sua ascendência japonesa parece forçada tanto em termos de roteiro, quanto em termos gráficos: para o papel, os produtores tentaram usar efeitos visuais que deixasse Scarlett com um fenótipo mais próximo do nipo-oriental.

A ação foi severamente criticada tanto por grupos e coletivos antirracistas, quanto por atrizes asiáticas. Constance Wu, atriz americana de descendência taiwanesa, comentou em suas redes sociais: “É uma forma de reduzir uma raça à mera aparência física em oposição à cultura, à experiência social, à identidade, à história”.

Ming-Na Wen afirma “não ter nada contra Scarlett Johansson”, sendo uma grande fã, mas crítica ao whitewashing que ocorreu. A atriz sino-americana dublou Mulan nas duas animações da Disney e é cogitada para fazer este papel no live action, outra produção que gerou polêmica quanto à seleção do elenco.

Existiu por parte da produção do filme a busca por uma estética oriental que tornasse a compreensão do espaço asiático onde a história acontece algo possível para uma produção hollywoodiana. Para tal, A Vigilante do Amanhã teve filmagens em Hong Kong e em Xangai, ainda que rodado principalmente em Wellington, na Nova Zelândia, trazendo uma estética que tenta mesclar o futurista e o oriental ‒ bebendo da fonte de Blade Runner (1982), cujo visual cyberpunk teve inspirações futuristas em sociedades asiáticas.

Estética futurista de A Vigilante do Amanhã

Os próprios personagens asiáticos, numericamente e estrategicamente postos na figuração, contribuem com a criação de uma atmosfera oriental. O questionamento existe não pela simples inserção desses rostos e elementos, mas sim do que eles simbolizam e como são apresentados.

Daisuke Aramaki, representado pelo ator Takeshi Kitano em A Vigilante do Amanhã, e na animação original.

Na trama, Daisuke Aramaki, chefe do Setor de Segurança (Setor 9), é um personagem posto de maneira quase satírica ao ser o único que possui falas em japonês, também não se comunicando em outro idioma: na interação entre personagens, tudo o que diz em japonês é respondido em inglês pelos demais. Há uma razão para isso: é um dos elementos que, no meio de uma produção americana, tem a missão de nos lembrar que o personagem tem origem em outro grupo racial. Por essência, essa operação é segregadora: o que foi planejado como característica de estilo, passa a ser uma marca de diferenciação.

Esse distanciamento racial existe desde o início da película, com a aparição de geishas-robô, expostas da maneira mais comum na cultura pop ocidental: belas, com certo erotismo, delicadas e silenciosas nos seus longos kimonos. O que uma produção majoritariamente branca não poderia perceber ao planejar, roteirizar, produzir, filmar e editar a cena, é que a imagem que eles trazem da geisha é o retrato da mulher serva, violentada, fetichizada e submissa, cujo corpo é objeto de entretenimento de outrém. Para personagens como as geishas-robô, que trazem o peso da misoginia vestida com a casta da “tradição”, morrer pelos tiros de uma personagem branca de olhos claros vai além da representação da violência meramente física.

E não apenas os asiáticos são alvos de apontamento no longa, como também os negros ‒ cabendo à esses os papéis decorativos e estereotipados do roteiro. A única mulher negra que possui falas durante todo o filme é apresentada como prostituta, numa cena de erotização gratuita e sem serviço ao enredo.

Assim, toda caracterização étnica, racial e cultural é feita por meio do imaginário hollywoodiano do que é ser negro e ser asiático. Ainda que isso signifique deixar personagens em vestes tradicionais não usuais ou citar a Yakuza em cena.

A mulher asiática no cinema

Scarlett Johansson, pelo seu papel em A Vigilante do Amanhã, aparece como um dos tokens asiáticos femininos do infográfico “Who is your Token Asian?”, da estudante Joy Li.

Para Joy, o gráfico exprime a situação que as mulheres asiáticas devem escolher continuamente entre diferentes expectativas da sociedade não asiática ou risco de ser isolada por ambos os lados, sendo um cenário onde só há a perder.

Ao mesmo tempo, a própria construção da personagem na adaptação americana pode ser analisada. Major, enquanto ciborgue, é uma figura servil nas mãos de terceiros. Enquanto heroína, sua força e seu domínio com armas e luta física é o que a caracteriza como “oriental” e “feroz”. Forte, mas de uma maneira exótica.

Major carrega a imagem do avanço tecnológico que sociedades asiáticas com base na objetificação da figura da mulher asiática, retratada como um brinquedo comandável. Este tipo, a mulher asiática robô, parece ser crescente na produção cultural contemporânea. Diferentemente do estereótipo da “mulher dragão”, é um dos mais antigos para retratar a mulher asiática enquanto personagem: é a mulher que domina artes marciais mas sem ter uma força interna que se assemelhe à força bruta, sendo “uma instrumentalização da figura feminina asiática, e também muitas vezes uma apropriação cultural”, de acordo com a Lótus PWR, plataforma de empoderamento e vocalização da mulher descendente de asiáticos.

Estes arquétipos foram elencados pelo Lótus PWR. Você pode conferir a galeria completa aqui.

A casca sem fantasma

Scarlett Johansson, porém, quando questionada em entrevista pela Marie Claire sobre a polêmica do whitewash, diz que nunca cogitaria interpretar uma pessoa de outra raça. Para ela, “diversidade é importante em Hollywood, e eu nunca iria querer sentir como se eu estivesse fazendo personagem que fosse ofensivo”. A importância para atriz, então, que justificaria aceitar o papel, seria uma questão de gênero: “ter uma franquia com uma protagonista feminina liderando é uma oportunidade tão rara”, afirma. O posicionamento supostamente feminista, no entanto, não inclui as ações passadas do próprio diretor do longa: Rupert Sanders ficou conhecido por trair a esposa, Liberty Ross, durante as gravações de A Branca de Neve e o Caçador em 2012, filme o qual ele dirigiu e ela atuou.

Ghost in the Shell foi uma história que pôs a filosofia e a axiologia nos moldes de uma produção cyberpunk dos anos 90. Pautou a memória, o pertencimento e a história, com conflitos sobre identidade e questionamentos sobre o que é ou não real, e o que consideramos fazer parte do “bem” ou do “mal”, do ético ou do falso e imoral. Essa riqueza de temas inspirou outras produções asiáticas e influenciou obras ocidentais de grande destaque, como Matrix (1999) e Identidade Bourne (2002). Para os fãs desse universo, esta última produção soa infiel e infantil. Para os fãs da produção cinematográfica, são efeitos visuais ricos em detalhes, sequências de cenas de ação bem trabalhadas, uma trilha que contribui para o crescente de emoção construído nas cenas e uma fotografia com alusões bem elaboradas ao primeiro filme de 1995 ‒ algo que, para quem conhecerá a obra por essa nova franquia, vale ver a produção de Mamoru Oshii e assistir às homenagens de Sanders numa sala 3D.

Com mais atenção à casca do que ao espírito, a profundidade temática se esgota em A Vigilante do Amanhã, que trata temas e personagens de maneira rasa, ainda que visualmente bela.

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Carolina Tiemi
Lado M

Comunicadora e legítima menina super Brasil (até que em 2020 seria revisitada e virar hit nacional)